17 de julho de 2016

Como Eu Era Antes de Você







Como eu era antes de você - Jojo Moyes 

Prólogo 

2007

 Quando ele sai do banheiro, ela está acordada, recostada nos travesseiros e folheando os prospectos de viagem que estavam ao lado da cama. Usa uma camiseta dele e seu cabelo comprido está despenteado de uma maneira que o faz lembrar da noite anterior. Ele fica parado, desfrutando da breve recordação enquanto enxuga seu próprio cabelo com uma toalha.

 Ela levanta os olhos do prospecto e faz um beicinho. É um pouco velha para isso, mas eles estão juntos há pouco tempo e ainda é bonitinho.

 — A gente precisa mesmo fazer algo que envolva escalar montanhas ou se pendurar em ribanceiras? É a primeira vez que vamos tirar férias juntos para valer e não há uma única viagem nesses folhetos que não envolva se atirar de algum lugar ou — ela finge tiritar de frio — usar casacos de fleece.

 Ela joga os folhetos na cama e estica os braços bronzeados acima da cabeça. A voz está rouca, prova de que dormiram pouco.

— Que tal um spa de luxo em Bali? Poderíamos àcar deitados na areia… passar horas sendo paparicados… ter longas noites relaxantes…

 — Não posso ter esse tipo de férias. Preciso de atividade…

 — Como se jogar de aviões. — Não critique até que tenha experimentado.

 Ela fica amuada.

 — Se você não se importar, acho que vou continuar criticando.

 A camiseta dele está ligeiramente úmida em sua pele. Ele passa um pente pelo cabelo, liga o celular e dá uma olhada na lista de recados que surge imediatamente na telinha.

— Muito bem, preciso ir — diz ele. — Tome seu café da manhã. — Inclina-se sobre a cama para beijá-la. Ela tem um cheiro morno, perfumado e muito sensual. Ele inala o aroma de sua nuca e, por um instante, perde o rumo dos pensamentos quando ela o envolve pelo pescoço com os braços, puxando-o para a cama.

— Ainda vamos viajar no fim de semana?

 Ele se desvencilha, relutante.

 — Depende do que acontecer nessa reunião. Por enquanto, tudo está meio no ar. Pode ser que eu ainda tenha de ir a Nova York. Que tal jantar num lugar bacana na quinta-feira, para compensar? Você escolhe o restaurante. — Sua jaqueta de motoqueiro está pendurada atrás da porta, ele a pega.

 Ela estreita os olhos, pensativa.

— Jantar com ou sem o Sr. BlackBerry?

— Com quem?

— O Sr. BlackBerry faz com que eu me sinta uma intrusa. — Ela faz beicinho de novo. — Parece que sempre tem uma terceira pessoa disputando sua atenção.

— Vou colocá-lo no silencioso.

— Will Traynor! — ela o repreende. — Você precisa desligar esse aparelho em algum momento.

 — Na noite passada eu desliguei, não foi?

— Só sob enorme coação.

 Ele sorri.

— É assim que chamamos isso agora? — Ele calça os sapatos.

 E o efeito que Lissa mantinha sobre sua mente se rompe. Ele joga a jaqueta de motoqueiro no braço e lança um beijo para ela ao sair.

 O BlackBerry tem vinte e duas mensagens, a primeira delas enviada de Nova York às três e quarenta e dois da manhã. Algum problema legal. Will desce de elevador até o estacionamento no subsolo, tentando rememorar os acontecimentos da noite.

— Bom dia, Sr. Traynor.

O segurança sai de seu cubículo. O lugar é à prova de intempéries, embora ali não haja intempéries das quais se proteger. Às vezes, Will imagina o que o segurança faz lá embaixo, de madrugada, olhando fixamente para a televisão do circuito interno e para os para-lamas reluzentes de carros de sessenta mil libras que jamais ficam sujos.

 Ele enfia os ombros na jaqueta de couro.

— Como está o tempo lá fora, Mick?

— Horrível. Está chovendo canivetes.

 Will para.

— É mesmo? Não dá para ir de moto?

 Mick balança a cabeça.

— Não, senhor. A menos que tenha um bote inflável. Ou esteja querendo morrer.

Will olha para a moto e tira a jaqueta. Não importa o que Lissa pense, ele não é o tipo de homem que corre riscos desnecessários. Abre o porta-capacete da moto e guarda a jaqueta lá dentro, tranca o compartimento e joga as chaves para Mick, que pega-as precisamente com uma das mãos.

 — Passe por debaixo da porta do meu apartamento, pode ser?

 — Sem problemas. Quer que eu chame um táxi?

 — Não. Não faz sentido nós dois nos molharmos.

Mick aperta o botão do portão automático e Will sai, acenando em agradecimento. A manhã está escura e trovejante a seu redor, o tráfego no centro de Londres já está intenso e lento apesar de ainda ser sete e meia. Ele levanta o colarinho em volta do pescoço e segue a passos largos pela rua até o cruzamento, onde é mais provável que consiga um táxi. As ruas estão escorregadias por causa da água, a luz cinzenta se reflete nas poças da calçada.

Will amaldiçoa intimamente outros engravatados ao enxergá-los na beira do meio-fio. Desde quando Londres inteira acorda tão cedo? Todos tiveram a mesma ideia.

 Enquanto pensa no melhor lugar para se posicionar, o celular toca. É Rupert.

— Estou chegando. Estou tentando pegar um táxi.

 Ele vislumbra um táxi livre se aproximando pelo outro lado da rua e começa a ir em sua direção, desejando que ninguém mais o tenha visto. Um ônibus passa roncando, seguido de um caminhão que freia de maneira estridente, impedindo-o de ouvir o que Rupert diz.

— Não estou ouvindo, Rupe — grita, por sobre o barulho do trânsito. — Você vai precisar repetir. — Meio isolado em uma ilha de trânsito, com o tráfego fluindo por ele como uma correnteza, vê a luz alaranjada sobre o capô do táxi, indicando que o veículo está desocupado, e estica a mão livre, na esperança de que o motorista consiga vê-lo através da chuva forte.

 — Você precisa ligar para Jeff em Nova York. Ele ainda está acordado, à sua espera. Tentamos falar com você na noite passada.

 — Qual é o problema?

— Um empecilho legal. Duas cláusulas que eles estão protelando por causa de duas alíneas… assinatura… papéis. — A voz é abafada por um carro que passa, os pneus silvando na água.

 — Não entendi.

 O táxi o viu. Está reduzindo a marcha, esguichando um fino borrifo de água à medida que anda mais devagar do outro lado da rua. Will percebe que o homem mais adiante diminui o passo, desapontado, ao perceber que não alcançará o táxi a tempo. Ele tem uma íntima sensação de vitória.

 — Escute, peça a Cally para colocar a papelada na minha mesa — grita. — Chego em dez minutos.

Olha para os dois lados, então baixa a cabeça ao dar os últimos passos para atravessar a rua em direção ao táxi, já com o destino “Blackfriars” na ponta da língua. A chuva se infiltra pelo espaço entre o colarinho e a camisa. Ele vai chegar ao escritório ensopado só por ter andado aquele pedacinho na chuva. Talvez precise mandar a secretária comprar outra camisa.

 — E temos de resolver essa questão importante antes que Martin chegue… Ele olha em direção ao chiado, o som rude e estridente de uma buzina. Vê a lustrosa lateral do táxi negro diante de si, o motorista já abaixando o vidro, e pelo canto do olho nota algo que não distingue direito, que está vindo para cima dele numa velocidade incrível.

 Ele se vira e, nesse milésimo de segundo, percebe que a coisa vem em sua direção, que não há como sair da frente. Surpreso, abre a mão e o BlackBerry cai no chão. Ouve um grito que talvez seja seu. A última coisa que vê é uma luva de couro, um rosto dentro de um capacete, o choque nos olhos do homem refletindo o dele próprio. Há uma explosão quando tudo se parte em pedaços.

E então não há nada.


Capítulo 1

 2009 

São cento e cinquenta e oito passos entre o ponto de ônibus e minha casa, mas é possível esticar esse número para cento e oitenta se você não estiver com pressa, ou, por exemplo, se estiver usando sapatos de plataforma. Ou se estiver com os sapatos que você comprou num brechó e que possuem borboletas nos dedos e nunca ficam bem presos nos calcanhares, o que explica por que custaram a pechincha de uma libra e noventa e nove centavos. Virei a esquina na nossa rua (sessenta e oito passos) e logo pude ver a casa — uma casa geminada de quatro quartos numa sequência de outras casas geminadas de três e quatro quartos. O carro de papai estava do lado de fora, o que significava que ele ainda não tinha ido para o trabalho.

 Às minhas costas, o sol se punha atrás do castelo Stortfold, sua sombra escura escorrendo pela colina feito cera derretida para me engolir. Quando eu era pequena, costumávamos fazer com que nossas sombras alongadas participassem de tiroteios, nossa rua era o O.K. Corral. Em outro dia, eu poderia contar tudo o que vivi nessa rua: onde papai me ensinou a andar de bicicleta sem rodinhas; onde a Sra. Doherty, com sua peruca torta, fazia bolos galeses para nós; onde Treena, aos onze anos, prendeu a mão numa cerca viva e perturbou um ninho de vespas nos fazendo correr aos gritos por todo o trajeto até o castelo. 

O triciclo de Thomas estava jogado no meio do caminho e, ao fechar o portão atrás de mim, eu o arrastei até a entrada e abri a porta. O calor me atingiu com a força de um air bag. Mamãe é torturada pelo frio e mantém a calefação ligada o ano inteiro. Papai está sempre abrindo janelas, reclamando que ela vai nos levar à falência. Ele diz que nossa conta de luz é maior que o PIB de um pequeno país africano.

 — É você, querida? 

— Sou eu. — Pendurei minha jaqueta no gancho, lutando para conseguir um espaço no meio das outras. 

— Eu quem? Lou? Treena? 

— Lou. 

Da porta da sala, olhei ao redor. Papai estava de bruços no sofá, o braço enfiado entre as almofadas, como se elas estivessem tentando engoli-lo. Thomas, meu sobrinho de cinco anos, o observava atentamente logo atrás.

— Lego. — Papai virou-se para mim, o rosto vermelho devido ao esforço. — Não sei por que eles fazem as malditas peças tão pequenas. Você viu o braço esquerdo de ObiWan Kenobi?

— Estava em cima do aparelho de DVD. Acho que ele trocou o braço do Obi pelo do Indiana Jones.

— Bom, aparentemente Obi não pode ter braços bege agora. Temos de achar os braços pretos. 

— Eu não me preocuparia. Darth Vader não arranca o braço dele no segundo episódio? — Apontei para minha bochecha para Thomas dar um beijo. — Cadê a mamãe? 

— No andar de cima. Veja o que eu achei! Uma moeda! 

Olhei para cima bem a tempo de escutar o conhecido ranger da tábua de passar. Josie Clark, minha mãe, jamais se senta. É uma questão de honra. Era conhecida por ficar numa escada do lado de fora pintando as janelas, parando de vez em quando para acenar, enquanto o restante de nós jantava rosbife.

 — Você pode achar o bendito braço para mim? Thomas está me obrigando a procurar por isso há meia hora e preciso me arrumar para o trabalho. 

— Você está no turno da noite? 

— Sim. São cinco e meia. 

Dei uma olhada no relógio.

— Na verdade, são quatro e meia.

 Ele retirou o braço de baixo das almofadas e estreitou os olhos para conferir o relógio de pulso. 

— E o que você está fazendo em casa tão cedo?

 Balancei a cabeça vagamente, como se não tivesse entendido a pergunta direito, e entrei na cozinha. 

Vovô estava sentado na cadeira ao lado da janela, completando um sudoku. O assistente social nos tinha dito que o jogo seria bom para melhorar a concentração dele, que ajudaria nisso depois dos derrames. Desconfifo de que eu era a única a perceber que ele apenas preenchia os quadradinhos com o primeiro número que lhe viesse à cabeça.

 — Oi, vovô.

 Ele me olhou e sorriu. 

— Quer uma xícara de chá? 

Ele balançou a cabeça e abriu um pouco a boca. 

— Uma bebida gelada? 

Ele anuiu. 

Abri a porta da geladeira.

 — Não tem suco de maçã. — Disse, e então me lembrei de que suco de maçã era muito caro. — Quer um pouco de Ribena? 

Ele balançou a cabeça. 

— Água? 

Ele fez que sim e murmurou alguma coisa que poderia ser um obrigado quando lhe entreguei o copo. 

Minha mãe entrou na cozinha carregando um enorme cesto de roupas lavadas e cuidadosamente dobradas. 

— São suas? — perguntou, exibindo ostensivamente um par de meias. 

— São de Treena, eu acho. 

— Também pensei que fossem dela. Cor estranha. Devem ter ficado junto com o pijama cor de ameixa do seu pai. Você chegou cedo. Vai a algum lugar?

 — Não. — Enchi um copo com água da torneira e bebi. 

— Patrick vem aqui mais tarde? Ele ligou para cá de manhã. Você desligou seu celular? 

— Hum. 

— Ele falou que está tentando marcar as férias de vocês. Seu pai disse que ele viu alguma coisa sobre isso na TV. Vocês querem ir para onde? Ipsos? Calipso? 

— Skiathos. 

— É, isso. Você precisa verificar o hotel com muito cuidado. Faça isso pela internet. Ele e seu pai viram algo no noticiário da hora do almoço. Parece que estão fazendo uns sites, oferecendo pacotes pela metade do preço, e você só fica sabendo quando chega lá. Papai, quer uma xícara de chá? Lou não ofereceu uma para você? — Ela colocou a chaleira com água para esquentar e olhou para mim. Finalmente deve ter percebido que eu não disse nada. — Você está bem, querida? Está tão pálida. 

Colocou a mão na minha testa como se eu tivesse bem menos que meus vinte e seis anos.

 — Acho que não vamos tirar férias. 

A mão da minha mãe ficou imóvel. O olhar dela tinha aquela coisa meio raio x desde quando eu era criança. 

— Você e Pat estão com algum problema?

 — Mãe, eu… 

— Não estou querendo me intrometer. É que vocês estão juntos há tanto tempo. É muito natural que as coisas se compliquem de vez em quando. Quer dizer, eu e seu pai, nós… 

— Fui demitida.

 Minha voz cortou o silêncio. As palavras ficaram ali, no ar, esmorecendo na pequena cozinha por muito tempo após o som ter sumido.

 — Você o quê? 

— Frank vai fechar o café. Amanhã. — Estendi a mão com o envelope meio molhado que, em estado de choque, eu havia apertado ao longo de todo o trajeto para casa. Todos os cento e oitenta passos desde o ponto de ônibus. — Ele pagou os três meses do seguro. 

* * *

 O dia tinha começado como outro qualquer. Todo mundo que eu conhecia detestava manhãs de segunda-feira, mas eu nunca me incomodei. Gostava de chegar cedo ao The Buttered Bun, ligar a enorme máquina de chá, trazer os caixotes de leite e pão do depósito e conversar com Frank enquanto nos preparávamos para abrir.

 Gostava do calor abafado com aroma de bacon que havia no café, das pequenas rajadas de ar frio quando a porta se abria e se fechava, do murmúrio das conversas e, quando estava tudo calmo, do rádio de Frank tocando baixinho no canto. Não era um lugar moderninho, as paredes eram cobertas de fotos do castelo da colina, as mesas ainda ostentavam tampos de fórmica e o cardápio era o mesmo desde que comecei lá, exceto por algumas mudanças nos tipos de chocolate servidos no balcão e pela inclusão de brownies e bolinhos de chocolate na bandeja de bolos gelados. 

Mas, acima de tudo, eu gostava dos clientes. Gostava de Kev e de Angelo, os encanadores que vinham quase todas as manhãs e brincavam com Frank perguntando de onde vinha a carne que ele servia. Gostava da Sra. Dente-de-leão, apelidada assim por causa da cabeleira branca, que comia ovo com fritas de segunda a quinta-feira e se sentava para ler os jornais de distribuição gratuita, bebendo duas xícaras inteiras de chá de um jeito único. Sempre me esforçava para conversar com ela. Desconfiava de que fosse a única conversa que a velhinha tinha durante todo o dia.

 Gostava dos turistas, que paravam em seu caminho, indo e vindo do castelo; das crianças agitadas do colégio que davam uma passada lá depois das aulas; dos habitués dos escritórios que ficavam do outro lado da rua; e de Nina e Cherie, as cabeleireiras que sabiam quantas calorias tinha cada produto que oferecíamos em The Buttered Bun. Nem os clientes chatos, como a mulher ruiva, que gerenciava a loja de brinquedos e reclamava do troco pelo menos uma vez por semana, me incomodavam. 

Testemunhei o início e o fim de relacionamentos naquelas mesas; pais divorciados entregando e recebendo os filhos de seus ex-cônjuges; o alívio culpado dos que não suportavam cozinhar e o prazer secreto dos aposentados diante de um café da manhã com frituras. Todo tipo de pessoa frequentava aquele lugar e a maioria partilhava algumas palavras comigo, fazendo piadas e comentários por cima das canecas de chá fumegantes. Papai sempre dizia que jamais sabia o que sairia da minha boca, mas lá no café isso não importava.

 Frank gostava de mim. Era calado por natureza e dizia que eu animava o lugar. Para mim, era como ser garçonete de bar, mas sem a chatice dos bêbados. 

Até que, naquela tarde, depois que o movimento do almoço terminou e o café ficou vazio por um breve período, Frank, limpando as mãos no avental, saiu de trás da chapa do fogão e virou a pequena placa de Fechado para a rua.

 — Ai, ai, Frank, eu já disse a você. O salário-mínimo não inclui horas-extra. — Frank era, como dizia papai, esquisito como um gnu azul. Olhei para ele. 

Ele não estava sorrindo. 

— Oh-oh. Não coloquei de novo sal no pote de açúcar, coloquei?

 Ele estava torcendo um pano de prato com as duas mãos e eu nunca o vira mais desconfortável. Supus, num lampejo, que alguém tivesse reclamado de mim. Então ele fez sinal para eu me sentar.

 — Desculpe, Louisa — disse, depois de me contar. — Vou voltar para a Austrália. Meu pai não está bem e parece que o castelo vai mesmo começar a servir seus próprios lanches. Tem um aviso na parede.

 Acho que fiquei lá sentada, literalmente de boca aberta. Frank então me entregou o envelope e respondeu minha pergunta antes que ela saísse da minha boca. 

— Sei que nunca tivemos, você sabe, um contrato formal ou algo do tipo, mas eu não quero deixá-la na mão. No envelope tem três meses de salário. Fechamos amanhã. 

* * *

 — Três meses! — explodiu papai, quando mamãe colocou uma xícara de chá adoçado nas minhas mãos. — Bom, é generoso da parte dele, já que ela trabalhou como escrava naquele lugar nos últimos seis anos.

 — Bernard. — Mamãe lançou-lhe um olhar de aviso, indicando Thomas com a cabeça. Meus pais cuidavam dele depois da escola até Treena voltar do trabalho. 

— Que diabo ela deve fazer agora? No mínimo, poderia ter sido avisada com mais de um dia de antecedência. 

— Bom… ela simplesmente vai ter de arrumar outro emprego.

 — Não tem outra porcaria de emprego, Josie. Você sabe tão bem quanto eu. Estamos numa maldita recessão.

 Mamãe fechou os olhos por um instante, como se estivesse se controlando antes de falar. 

— Ela é uma garota inteligente. Vai achar alguma coisa. Tem um currículo consistente, não tem? Frank vai escrever uma boa carta de referências. 

— Ah, grande coisa… “Louisa Clark é muito boa em passar manteiga na torrada e excelente com o velho bule de chá.” 

— Obrigada pelo voto de confiança, pai. 

— Só estou dizendo.

 Eu sabia o verdadeiro motivo da preocupação de papai. Eles dependiam do meu salário. Treena ganhava quase nada na floricultura. Mamãe não podia trabalhar, pois tinha de cuidar do vovô e a pensão dele era mínima; papai estava sempre tenso em relação a seu emprego na fábrica de móveis. Fazia meses que o patrão vinha resmungando sobre um possível corte de pessoal. Em casa, comentava-se sobre dívidas, sobre a ilusão dos cartões de crédito. Dois anos antes, um motorista sem seguro destruíra o carro de papai e, de certa maneira, foi o que bastou para pôr abaixo o instável edifício que eram as finanças de meus pais. Meu modesto salário vinha sendo um pequeno pilar no orçamento doméstico, suficiente para ajudar a cuidar de nossa família a cada semana.

 — Não vamos nos precipitar. Amanhã ela pode ir ao Centro de Trabalho e ver quais são as ofertas. Ela tem o suficiente para se sustentar, por enquanto. — Eles falavam como se eu não estivesse ali. — E é inteligente. Você é inteligente, não é, querida? Talvez possa fazer aulas de digitação. Trabalhar em um escritório.

 Eu me sentei enquanto meus pais discutiam que trabalhos eu poderia conseguir com minhas poucas qualificações. Operária de fábrica, especialista em ferramentas mecânicas, passadora de manteiga. Pela primeira vez naquela tarde, tive vontade de chorar. Thomas me olhava com seus grandes olhos redondos e, sem dizer nada, me deu a metade de um biscoito babado. 

— Obrigada, Tommo — falei apenas movendo os lábios, sem emitir som, e comi o biscoito. 

* * *

 Ele estava na academia de ginástica, como eu sabia que estaria. De segunda a quinta, pontual como um relógio suíço, Patrick ficava lá se exercitando ou dando voltas na pista bem-iluminada. Subi a escada abraçando a mim mesma para me proteger do frio e entrei devagar na pista, acenando quando ele chegou perto o bastante para conseguir me ver. 

— Venha correr comigo — disse ele, ofegante, ao se aproximar. Sua respiração formava nuvens claras. — Faltam quatro voltas. 

Relutei por um instante e então comecei a correr ao seu lado. Era o único jeito de conseguir ter qualquer tipo de conversa com ele. Eu estava com meus tênis rosa com cadarços turquesa, o único sapato com o qual eu conseguia correr.

 Tinha passado o dia em casa, tentando ser útil. Acho que isso aconteceu uma hora antes de eu começar a perturbar minha mãe. Ela e vovô tinham sua rotina e minha presença atrapalhava os dois. Papai estava dormindo, já que havia passado para o turno da noite naquele mês, e não podia ser incomodado. Arrumei meu quarto, depois me sentei e assisti à TV em volume baixo e, algumas vezes, quando me lembrava por que eu estava em casa no meio do dia, sentia uma leve dor no peito.

 — Não estava esperando por você. 

— Eu me cansei de ficar em casa. Pensei que talvez pudéssemos fazer alguma coisa.

 Ele me olhou de soslaio. Seu rosto tinha uma leve camada de suor. 

— Quanto antes você arrumar outro emprego, querida, melhor.

 — Eu perdi meu emprego há apenas vinte e quatro horas. Será que eu posso me sentir um pouco infeliz e desanimada? Sabe, só por hoje? 

— Você precisa ver o lado bom. Você sabia que não poderia ficar naquele emprego para sempre. Precisa seguir em frente.

 Dois anos antes, Patrick tinha sido eleito o Jovem Empreendedor do Ano de Stortfold e ainda não tinha se recuperado bem da fama. Ele até havia conseguido um sócio, Ginger Pete, com quem montou uma empresa que oferecia formação pessoal para clientes num raio de duzentos metros e contava com dois furgões financiados. Também tinha um quadro branco no escritório onde ele gostava de rabiscar, com grossos marcadores pretos, a projeção que fazia para o volume de seus negócios, escrevendo e reescrevendo os números até corresponderem a suas expectativas. Nunca tive muita certeza de que os números tivessem alguma ligação com a realidade.

 — Lou, perder o emprego pode mudar a vida de uma pessoa. — Ele deu uma olhada no relógio, conferindo o tempo que fizera naquela volta. — O que você quer fazer? Podia estudar. Tenho certeza de que o mercado valoriza gente como você.

 — Gente como eu? 

— Sim, que busca uma nova oportunidade. O que você quer ser? Poderia ser esteticista. É bonita o bastante. 

Fez um sinal para mim enquanto corria, como se eu devesse agradecer o elogio. 

— Você conhece minha rotina de beleza. Água, sabão e um saco de papel enfiado na cabeça. 

Patrick começava a parecer exasperado. 

E eu, a ficar para trás. Detesto correr. E detestei-o por não ir mais devagar.

 — Pense… lojista. Secretária. Corretora de imóveis. Sei lá… deve ter alguma coisa que você queira fazer. 

Mas não tinha. Eu gostava de trabalhar no café. Gostava de saber tudo o que era possível saber a respeito do The Buttered Bun e de escutar sobre a vida das pessoas que frequentavam o lugar. Eu me sentia bem lá. 

— Não pode ficar infeliz, querida. Você precisa superar isso. Todos os melhores empreendedores lutaram para se reerguer dos piores infortúnios. Jeffrey Archer fez isso. Richard Branson também. — Ele deu uma batidinha no meu braço, tentando me animar.

— Duvido que Jeffrey Archer algum dia tenha perdido seu emprego de esquentar bolinhos para o chá. — Perdi o fôlego. E estava com o sutiã errado. Desacelerei, baixei as mãos e as apoiei nos joelhos. 

Ele se virou e voltou, a voz agitando o ar parado e frio. 

— Mas se ele tivesse… estou só falando. Pense melhor, ponha uma roupa bonita e vá ao Centro de Trabalho. Ou posso treinar você para trabalhar comigo, se quiser. Você sabe que isso dá dinheiro. E não se preocupe com a viagem. Eu pago.

 Sorri para ele.

 Ele me jogou um beijo e sua voz ecoou pelo ginásio vazio. 

— Você pode me pagar quando voltar a trabalhar. 

* * *

 Minha primeira tentativa foi na Agência de Empregos. Fiz uma entrevista individual que durou quarenta e cinco minutos e outra em grupo, na qual fiquei sentada com mais ou menos vinte pessoas, entre homens e mulheres, metade delas com a mesma expressão meio apalermada que eu também devia estar exibindo, a outra metade com a expressão vazia e desinteressada de quem já estivera ali diversas vezes. Eu vestia o que papai chamou de meus trajes “civis”.

 Como resultado desses esforços, consegui um estágio noturno numa fábrica de processamento de frangos (o que me causou pesadelos por semanas) e dois dias de treinamento no Conselho de Energia Doméstica. Cheguei bem rápido à conclusão de que estava sendo orientada a convencer idosos a trocar de fornecedores de energia e disse ao meu “conselheiro” pessoal, Syed, que não conseguia fazer isso. Ele insistiu para que eu continuasse, então fiz uma lista com alguns métodos que eles me pediram para usar e, a essa altura, ele ficou meio calado e sugeriu que nós (tudo era sempre “nós”, embora fosse bastante óbvio que um de nós tinha emprego) tentássemos outro cargo.

 Fiquei duas semanas numa rede de lanchonetes. O horário era bom, eu podia lidar com o fato de o uniforme dar estática no meu cabelo, mas achei impossível aguentar o regulamento de “respostas adequadas”, com seus “Posso ajudar?” e “Gostaria de adicionar uma porção grande de batata frita?”, e desisti depois que uma das garotas que fazia rosquinhas me pegou discutindo com uma criança de quatro anos sobre as diversas vantagens dos brinquedos gratuitos. O que posso dizer? Ela era uma menina de quatro anos inteligente. E eu também achava as Belas Adormecidas bobinhas.

 Agora eu estava sentada, esperando a quarta entrevista, enquanto Syed explorava o touch screen em busca de outras “oportunidades” de trabalho. Até ele, que tinha o jeito terrivelmente animado de quem conseguia empregos para os candidatos mais improváveis, estava começando a parecer um pouco preocupado.

 — Hum… já pensou em trabalhar na indústria de entretenimento?

 — Em que função? Assistente de mágico?

 — Não. Mas há uma vaga para dançarina de pole dance. Várias, aliás. Ergui uma sobrancelha.

 — Por favor, diga que está brincando. 

— São trinta horas por semana sem carteira assinada. Acredito que as gorjetas sejam boas. 

— Por favor, por favor, diga que você não acabou de sugerir que eu aceite um emprego que envolva desfilar de calcinha na frente de estranhos. 

— Você disse que tem muita facilidade para lidar com pessoas. E parece gostar de… roupas… teatrais. — Ele lançou um olhar para minha meia-calça, que era verde e brilhante. Pensei que aquela meia pudesse me animar. Thomas tinha cantarolado a música-tema de A Pequena Sereia durante todo o café da manhã. 

Syed deu um tapinha em algo no teclado. 

— O que acha de “supervisora de conversas telefônicas adultas”? 

Olhei bem para ele. 

Ele encolheu os ombros. 

— Você disse que gostava de conversar com pessoas.

 — Não. Também não quero ser garçonete seminua. Nem massagista. Ou operadora de webcam. Qual é, Syed. Deve ter alguma coisa que eu possa fazer sem necessariamente causar um ataque cardíaco no meu pai.

 Ele pareceu intrigado. 

— Não sobra muita coisa mais, a não ser vagas no comércio de varejo, com horário flexível.

 — Arrumar prateleiras à noite? — Já estive aqui tantas vezes que sou capaz de falar a língua deles.

 — Tem lista de espera para essa vaga. Quem tem filhos costuma gostar, porque combina com os horários escolares — disse Syed, desculpando-se. Ele estudou novamente a tela. — Então, só nos resta o serviço de cuidadora.

 — Limpar traseiro de velho.

 — Receio, Louisa, que você não tenha qualificação para muito mais que isso. Se quisesse aprender outra ocupação, eu teria prazer em lhe mostrar o caminho certo. Há vários cursos para adultos no centro de educação. 

— Mas já falamos sobre isso, Syed. Se eu fizer o curso, perco o seguro-desemprego, certo? 

— Se você não estiver disponível para trabalhar, sim. 

Ficamos em silêncio por um instante. Olhei para as portas, onde estavam dois seguranças corpulentos e me perguntei se teriam arrumado o emprego pelo Centro de Trabalho. 

— Não sou boa em lidar com idosos, Syed. Meu avô mora conosco desde que sofreu os derrames e não consigo lidar com ele.

 — Ah. Então você tem alguma experiência como cuidadora. 

— Não é bem assim. Minha mãe faz tudo para ele. 

— Sua mãe estaria interessada em trabalhar? 

— Engraçadinho. 

— Não estou fazendo graça.

 — Então quer que eu fique cuidando do meu avô? Não, obrigada. Aliás, agradeço por ele e por mim também. Não tem nada em algum café?

 — Acho que não há cafés em quantidade suficiente para que sobre um emprego para você, Louisa. Podemos tentar o KFC. Você pode conseguir alguma coisa por lá. 

— Acha que eu seria muito mais convincente ao oferecer um Balde KFC do que um Chicken McNugget? Acho que não.

 — Bom, então temos de procurar algo ainda mais longe.

 — Nossa cidade tem apenas quatro linhas de ônibus. Você sabe disso. E você disse que eu devia procurar o ônibus de turismo, mas liguei para a estação e ele para de circular às cinco da tarde. Além disso, é duas vezes mais caro que o ônibus normal. 

Syed recostou-se na cadeira. 

— A essa altura, Louisa, eu realmente preciso dizer que, sendo apta e capaz, para continuar a receber seu auxílio, você precisa…

 — …mostrar que estou tentando conseguir um emprego. Eu sei. 

Como explicar para aquele homem o quanto eu queria trabalhar? Ele tinha alguma ideia do quanto eu sentia falta do meu antigo emprego? O desemprego era um conceito, algo vagamente citado nos noticiários, que referia-se a estaleiros ou fábricas de automóveis. Nunca pensei que se pudesse sentir falta de um emprego como se sente de um braço ou de uma perna, algo que está sempre ali, que faz parte de você. Não imaginei que, além dos medos óbvios sobre dinheiro e futuro, perder o emprego fizesse a pessoa se sentir inadequada e um pouco inútil. Que pode ser mais difícil levantar de manhã do que quando se é brutalmente trazido à consciência pelo toque do despertador. Que você pode sentir falta dos colegas de trabalho, não importando quão pouco você se identificava com eles. Ou até mesmo que você pode ficar procurando rostos conhecidos ao andar pela rua. A primeira vez que vi a Sra. Dente-de-leão vagando na frente das lojas, parecendo estar tão sem rumo quanto eu, tive de lutar contra o ímpeto de ir até lá e dar um abraço nela. 

A voz de Syed interrompeu meu devaneio.

 — Ah, isto aqui pode dar certo.

 Tentei dar uma olhada na tela.

 — Acabou de aparecer. Neste minuto. Uma oferta de emprego como cuidadora assistente. 

— Eu lhe disse que não sou boa com… 

— Não é com idosos. É uma… vaga confidencial. Para ajudar na casa de alguém, e o endereço àca a menos de três quilômetros de onde você mora. “Cuidados e companhia para deficiente físico.” Você sabe dirigir? 

— Sei. Mas eu teria de limpar o…

 — Não é necessário limpar traseiros, pelo que entendi. — Ele examinou a tela. — Ele é… tetraplégico. Precisa de alguém de dia para ajudá-lo a se alimentar e para assisti-lo. Geralmente, nesse tipo de emprego é preciso acompanhar a pessoa quando ela quer ir a algum lugar, ajudar com coisas simples que ela não possa fazer. Ah. Paga muito bem. Muito mais do que o piso. 

— Provavelmente porque deve envolver limpeza de traseiro.

 — Vou ligar para confirmar isso. Se não precisar, você aceita fazer uma entrevista? 

Ele perguntou como se houvesse dúvida. 

Mas nós dois já sabíamos a resposta. Suspirei e peguei minha bolsa, pronta para voltar para casa. 

* * * 

— Jesus Cristo — exclamou meu pai. — Dá para imaginar? Como se já não fosse castigo suficiente ficar numa cadeira de rodas enferrujada, você ainda tem como acompanhante a nossa Lou.

 — Bernard! — minha mãe o repreendeu. 

Atrás de mim, vovô ria com a caneca de chá encostada na boca.


Capítulo 2

Não sou burra. Quero já deixar isso fora de cogitação. Mas é difícil não se sentir um pouco deficiente no quesito “Células Cerebrais” quando se cresce com uma irmã mais jovem que não só passou para a minha turma na escola, mas que depois foi aprovada em uma série acima da minha. 

Tudo o que é ajuizado ou inteligente Katrina foi a primeira a fazer, apesar de ser dezoito meses mais nova que eu. Cada livro que eu lia ela já tinha lido antes, tudo o que eu contava à mesa do jantar ela já sabia. É a única pessoa que conheço que gosta de fazer provas. Às vezes acho que me visto desse jeito porque a única coisa que Treena não consegue é combinar roupa. Ela é o tipo de garota que se veste de jeans e pulôver. Sua ideia de elegância é usar uma calça passada a ferro. 

Meu pai me chama de “figura” porque costumo falar a primeira coisa que me vem à cabeça. Ele diz que sou como a tia Lily, que eu nunca conheci. É meio estranho ser sempre comparada a alguém que você nunca viu. Se eu descesse a escada de botas roxas, papai acenaria com a cabeça para mamãe e diria “Você se lembra da tia Lily com aquelas botas roxas, hein?”, e mamãe daria uma risadinha e depois riria abertamente, como se ela e papai partilhassem uma piada secreta. Minha mãe me chama de “singular”, que é uma maneira educada de não entender muito bem como me visto. 

Mas, exceto por um curto período durante minha adolescência, eu jamais quis ser como Treena, nem como qualquer outra menina da escola. Até uns quatorze anos, eu preferia roupas de menino e atualmente prefiro o que me agrada, conforme o humor do dia. Não há por que querer parecer convencional. Sou pequena, de cabelos escuros e, segundo meu pai, tenho o rosto de um elfo. Não é a mesma coisa que ter uma “beleza élfica”. Não sou feia, mas acho que ninguém vai me chamar de bonita. Não tenho aquela coisa graciosa. Patrick diz que sou linda quando quer transar, mas nem sempre ele é tão transparente assim. Nós nos conhecíamos há quase sete anos. 

Eu tinha vinte e seis anos e não sabia muito bem quem era. Até perder o emprego, não tinha sequer pensado nisso. Achava que provavelmente iria me casar com Patrick, teria filhos e moraria a algumas ruas de onde sempre morei. Exceto pelo gosto por roupas exóticas e pelo fato de ser um pouco baixa, não sou muito diferente de qualquer pessoa com que se possa cruzar na rua. Provavelmente, ninguém olharia para mim duas vezes. Uma garota comum, levando uma vida comum. Para mim, estava ótimo desse jeito. 

* * * 

— Numa entrevista de trabalho, você precisa ir de tailleur — insistira mamãe. — Hoje, as pessoas são informais demais. 

— Porque usar risca de giz será fundamental se eu estiver dando comida na boca de um velho.

 — Não seja espirituosa. — Não posso comprar um terninho. E se eu não conseguir o emprego?

 — Pode usar um meu, eu passo a ferro uma linda blusa e, uma vez na vida, não use o cabelo para cima naquelas… — e apontou para meu cabelo, que eu costumava deixar preso num nó preto de cada lado da cabeça — …coisas que parecem da Princesa Leia. Apenas tente parecer uma pessoa normal. 

Era melhor não discutir com mamãe. E eu tinha certeza de que papai recebera a recomendação de não comentar meus trajes quando saí de casa, nem meu andar esquisito naquela saia justa demais. 

— Tchau, querida — disse ele, com os cantos da boca se repuxando. — Boa sorte. Você está muito… profissional. 

O constrangedor não era eu usar um tailleur da minha mãe, ou que aquele fosse um modelo que esteve na moda no final dos anos oitenta, mas sim que a roupa estava um pouquinho pequena para mim. Eu podia sentir o cós cortando minha barriga e o paletó com duas fileiras de botões repuxando para um lado. Como papai diz a respeito de mamãe, um grampo de cabelo é mais gordo que ela.

 Fiz a curta viagem de ônibus me sentindo levemente enjoada. Nunca tive uma entrevista de trabalho de verdade. Comecei a trabalhar no The Buttered Bun depois que Treena apostou que eu não conseguiria um emprego em apenas um dia. Entrei lá e simplesmente perguntei a Frank se ele precisava de um par extra de mãos. Aquele era o primeiro dia de funcionamento e ele pareceu quase cego de gratidão.

 Agora, olhando para trás, não consigo nem me lembrar de ter falado com ele sobre dinheiro. Ele sugeriu um pagamento semanal, concordei, e uma vez por ano me dava um pequeno aumento, geralmente um pouco mais do que eu teria pedido. 

O que, afinal, se pergunta numa entrevista de emprego? E se fizessem um teste prático com o tal idoso, como lhe dar comida, ou um banho, ou algo assim? Syed tinha dito que havia um cuidador do sexo masculino, que era responsável pelas “necessidades íntimas” (estremeci ao ouvir a expressão). As funções do segundo cuidador não estavam, segundo ele, “muito claras”. Imaginei-me limpando a baba da boca do idoso, e talvez perguntando aos gritos QUER UMA XÍCARA DE CHÁ? 

Quando vovô estava se recuperando dos derrames, não conseguia fazer nada sozinho. Mamãe fazia tudo. “Sua mãe é uma santa”, dizia papai, o que entendi significar que ela limpava a bunda dele sem, no entanto, sair aos berros de casa por isso. Tenho certeza de que ninguém jamais me descreveu assim. Eu cortava a comida para vovô e lhe preparava chá, mas, quanto ao resto, não estava muito segura de ter os elementos necessários. 

A Granta House, o endereço do emprego, ficava do outro lado do castelo Stortfold, perto das muralhas medievais, numa comprida trilha sem pavimentação que continha apenas quatro casas e a loja do National Trust, bem no meio da região turística. Passei por aquela casa milhares de vezes na vida sem jamais ter prestado atenção nela. Agora, ao passar pelo estacionamento do castelo e pela ferrovia em miniatura, que estavam vazios e desolados como só uma atração de verão pode estar em fevereiro, notei que a casa era maior do que eu imaginara, de tijolos vermelhos e fachada dupla, o tipo de casa que a gente só vê em exemplares antigos da revista Country Life enquanto espera ser atendida no médico. 

Percorri a longa entrada para carros tentando não pensar que alguém me olhava da janela. Cruzar uma longa entrada para carros deixa você em desvantagem; isso a faz se sentir automaticamente inferior. Eu estava exatamente ponderando se deveria abaixar o topete do meu cabelo quando a porta se abriu e dei um pulo. 

Uma mulher pouco mais velha que eu saiu para o vestíbulo. Ela usava calça branca, uma túnica que parecia ser de médico e carregava um casaco e uma pasta embaixo do braço. Ao passar por mim, deu um sorriso educado.

 — E muito obrigada por ter vindo — disse uma voz lá de dentro. — A gente se fala. Ah. — Um rosto surgiu, de uma linda mulher de meia-idade, com cabelos num corte que parecia caro. Usava um terninho que, suponho, custava mais do que meu pai ganhava por mês. 

— Você deve ser a Srta. Clark. 

— Louisa. — Estendi a mão, como minha mãe insistiu que eu fizesse. Meus pais tinham dito que hoje em dia os jovens nunca estendem a mão. Antigamente, você sequer sonhava com um “oie” ou, pior, em jogar um beijo no ar como forma de cumprimento. Aquela mulher não parecia alguém que recebesse bem um beijo no ar. 

— Certo, pois não. Entre, por favor.

 Ela retirou a mão da minha tão rápido quanto era humanamente possível, mas senti seus olhos sobre mim, como se ela já estivesse me avaliando. 

— Vamos entrar? Conversaremos na sala. Meu nome é Camilla Traynor. — Ela parecia exausta, como se já tivesse dito as mesmas palavras várias vezes naquele dia. 

Segui-a até uma sala enorme com janelas francesas que iam do chão ao teto. Pesadas cortinas drapejavam elegantemente de grossos varões de mogno e o piso era coberto de tapetes persas com motivos intrincados. Tudo cheirava a lustra-móveis e mobília antiga. Havia elegantes mesinhas laterais por todo canto, seus lustrosos tampos cobertos de caixas decorativas. Pensei por um instante onde é que, raios, os Traynor pousavam suas xícaras de chá. 

— Então você veio porque viu o anúncio do Centro de Trabalho, certo? Sente-se, por favor.

 Enquanto ela folheava os papéis em sua pasta, examinei disfarçadamente a sala. Pensei que a casa talvez devesse ser parecida com uma casa de repouso, tudo colocado no alto e com as superfícies muito limpas. Mas era como um daqueles hotéis assustadoramente caros, imerso numa riqueza antiga, cheio de coisas de alto valor sentimental e que já pareciam valiosas independentemente disso. Havia fotos em porta-retratos de prata em uma mesinha lateral, mas estavam longe demais para eu ver os rostos. Enquanto ela vasculhava seus papéis, eu me ajeitei na cadeira para tentar enxergar melhor.

 E foi então que ouvi aquilo — o som inconfundível de pano se rasgando. Olhei para baixo e vi as duas partes de tecido que se juntavam na lateral da minha perna direita separadas violentamente, lançando para o alto fiapos de linha de seda que formavam uma franja deselegante. Senti meu rosto se inundar de cor.

 — Então… Srta. Clark… tem alguma experiência no cuidado de pessoas tetraplégicas?

 Virei-me para olhar a Sra. Traynor e me retorci de modo que o paletó cobrisse o máximo possível da saia. 

— Não.

 — Trabalha há muito tempo como cuidadora? 

— Hum… na verdade, nunca trabalhei — disse eu, acrescentando, como se ouvisse a voz de Syed no meu ouvido: — Mas tenho certeza de que posso aprender. 

— Sabe em que consiste a tetraplegia? 

Vacilei. 

— É quando… a pessoa fica presa a uma cadeira de rodas? 

— Acredito que essa é uma forma de descrever. Há diversos graus, mas neste caso estamos falando da perda completa do uso das pernas e uso bastante limitado das mãos e dos braços. Isso incomoda a você? 

— Bom, não tanto quanto incomoda a ele, é claro. — Esbocei um sorriso, mas o rosto da Sra. Traynor estava inexpressivo. — Desculpe… não quis…

 — Sabe dirigir, Srta. Clark? 

— Sim. 

— Tem carteira de motorista sem infrações? 

Anuí. 

Camilla Traynor ticou algo em sua lista. 

O rasgo estava aumentando. Eu podia vê-lo subir lenta e inexoravelmente pela minha coxa. Nessa altura, no momento em que eu me levantasse iria parecer uma dançarina de cassino de Las Vegas. 

— Você está se sentindo bem? — A Sra. Traynor olhava para mim. 

— Só estou com um pouco de calor. Posso tirar o paletó? — Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, arranquei o paletó num movimento gracioso e amarrei-o na cintura, tapando o rasgo na saia. — Bem quente — disse eu, sorrindo para ela. — O calor vindo lá de fora. A senhora sabe, não é? 

Houve uma breve pausa e então a Sra. Traynor olhou de novo em sua pasta.

 — Qual a sua idade? 

— Vinte e seis. 

— E ficou seis anos no emprego anterior. 

— Sim. A senhora deve ter uma cópia da minha carta de recomendação. 

— Hum… — A Sra. Traynor segurou a carta e deu uma olhadela. — Seu ex-empregador diz que você “é uma pessoa calorosa, falante e cheia de vida.” 

— É, eu paguei para ele escrever isso. 

De novo, aquela cara de paisagem. 

Ai, droga, pensei.

 Era como se eu estivesse sendo avaliada. Não necessariamente de um jeito bom. De repente, a saia da minha mãe se tornou barata, a trama sintética brilhava na luz fraca. Eu deveria ter usado minha calça mais simples e uma camiseta. Qualquer coisa, menos esse tailleur. 

— Então, por que está saindo desse emprego onde é, claramente, tão valorizada? 

— Frank, o proprietário, vendeu o café. É aquele que fica no final do castelo. The Buttered Bun. Ficava — corrigi. — Eu ficaria feliz em continuar lá. 

A Sra. Traynor fez que sim com a cabeça, tanto porque achou desnecessário dizer mais alguma coisa quanto porque ela também adoraria que eu tivesse continuado por lá. 

— O que exatamente pretende fazer da sua vida? 

— Desculpe? 

— Pretende ter uma carreira? Isso é um primeiro passo para algo mais? Tem algum sonho profissional que deseja realizar? 

Olhei para ela, confusa. 

Seria essa uma pergunta do tipo armadilha? 

— Eu… realmente ainda não pensei muito sobre isso. Desde que perdi o emprego, eu apenas… — engoli em seco — Eu só quero voltar a trabalhar.

 Pareceu uma resposta fraca. Que tipo de pessoa vai para uma entrevista de emprego sem sequer saber o que quer fazer? A expressão da Sra. Traynor sugeria que ela também pensava assim.

 Ela pousou a caneta.

 — Então, Srta. Clark, por que acha que devo selecioná-la em vez de, por exemplo, o candidato anterior, que tem vários anos de experiência com pacientes tetraplégicos? 

Olhei para ela. 

— Hum… honestamente? Não sei. — Tal comentário encontrou o silêncio, então acrescentei: — Acho que isso compete à senhora.

 — Você não pode me dar uma única razão para contratá-la? 

De repente, o rosto da minha mãe surgiu à minha frente. A ideia de voltar para casa com um tailleur destruído e outra entrevista fracassada era demais para mim. E aquele emprego pagava mais de nove libras a hora. 

Sentei-me ereta por um instante.

 — Bom… aprendo rápido, nunca fico doente, moro logo do outro lado do castelo e sou mais forte do que pareço… provavelmente forte o bastante para ajudar seu marido a se locomover… 

— Meu marido? Não é com o meu marido que você trabalharia. É com meu filho.

 — Seu filho? — Pisquei. — Hum… não tenho medo de trabalho duro. Tenho facilidade para lidar com todo tipo de gente e… faço um ótimo chá. — Comecei a tagarelar para preencher o silêncio. A ideia de que o tetraplégico era filho dela me derrubou. — Quer dizer, meu pai não acharia que essa é a melhor das referências. Mas minha experiência diz que não existe nada que não possa ser resolvido com uma boa xícara de chá…

 Tinha algo um pouco estranho no jeito como a Sra. Traynor me olhava. 

— Desculpe-me — gaguejei, ao perceber o que tinha dito. — Não estou querendo dizer que a coisa… a paraplegia… tetraplegia… do seu filho… possa ser resolvida com uma xícara de chá. 

— Devo dizer, Srta. Clark, que o contrato é provisório. Deve durar, no máximo, seis meses. Por isso o salário é… proporcional. Queríamos atrair a pessoa certa. 

— Acredite em mim, quando você trabalhou em turnos numa processadora de frangos, trabalhar na baía de Guantánamo fica interessante. — Ah, cale a boca, Louisa. Mordi o lábio. 

Mas a Sra. Traynor pareceu não se alterar. Fechou a agenda.

 — Meu filho, Will, sofreu um acidente de trânsito há quase dois anos. Ele precisa de cuidados intensivos, que são, em grande parte, realizados por um enfermeiro treinado. Há pouco tempo voltei a trabalhar e o cuidador precisaria estar aqui durante o dia para fazer companhia a ele, ajudá-lo a comer e beber, e geralmente é sensato ter um par extra de mãos, para garantir que ele não vá se machucar. — Camilla Traynor olhou para o colo. — É de extrema importância que Will tenha alguém aqui que compreenda essa responsabilidade.

Tudo o que ela disse, inclusive a maneira como destacou as palavras, parecia sugerir algum nível de idiotice da minha parte. 

— Sei. — Fui pegando minha bolsa. 

— Então, você gostaria do emprego?

 Foi tão inesperado que pensei ter ouvido errado.

 — O que a senhora disse? 

— Precisamos que comece o mais rápido possível. O pagamento será semanal. 

Fiquei um instante sem saber o que dizer. 

— Prefere ficar comigo em vez… — comecei. 

— O horário é puxado, das oito da manhã às cinco da tarde, às vezes mais. Não há exatamente um horário de almoço, mas quando Nathan, o enfermeiro do turno do dia, vier ajudá-lo com a refeição, você deverá ter meia hora livre.

 — A senhora não precisaria de alguém… da área médica? 

— Will recebe todo o cuidado médico que podemos oferecer. Queremos uma pessoa forte… e animada. Ele tem uma vida… complicada, e é importante que seja incentivado a… — Ela se interrompeu, de olhos fixos em alguma coisa do outro lado das janelas francesas. Por fim, voltou-se novamente para mim. — Bom, digamos que o bemestar físico dele é tão importante quanto o mental. Entende?

 — Acho que sim. Vou precisar… usar uniforme?

 — Não. Definitivamente nada de uniforme. — Ela olhou minhas pernas. — Embora seja bom que use algo… menos revelador.

 Olhei para onde meu paletó tinha escorregado, revelando uma generosa extensão de perna nua. 

— Isso… desculpe. Rasgou. Na verdade, a saia não é minha.

 Mas a Sra. Traynor parecia não estar mais ouvindo.

 — Quando você começar, explico o que precisa fazer. No momento, Will não é a pessoa mais fácil de se lidar no mundo, Srta. Clark. O trabalho vai exigir tanto de sua atitude mental quanto das… habilidades profissionais que possa ter. Então, nós nos vemos amanhã?

 — Amanhã? Você não quer… não quer que eu o conheça? 

— Will não está num bom dia. Acho melhor fazermos isso depois. 

Levantei-me, percebendo que a Sra. Traynor já esperava que eu saísse.

 — Sim — concordei, puxando o paletó de mamãe por cima de mim. — Hum. Obrigada. Chego às oito amanhã. 

* * * 

Mamãe estava servindo batatas no prato de papai. Serviu duas, ele desviou o prato, pegando uma terceira e uma quarta batata da tigela. Ela o impediu de pegar mais, colocou as duas batatas extras de volta na tigela e deu uma batidinha nos nós dos dedos dele com a colher, quando fez menção de se servir outra vez. Sentados à pequena mesa estavam meus pais, minha irmã, Thomas, vovô e Patrick, que sempre vinha jantar às quartas-feiras. 

— Papai — disse mamãe para vovô. — Quer que alguém corte as batatas para você? Treena, você pode cortar para ele?

 Treena debruçou-se e começou a cortar a comida no prato de vovô com golpes hábeis. No outro extremo, ela já tinha feito a mesma coisa no prato de Thomas. 

— Então, quão ruim está esse homem, Lou?

 — Não deve ser muito grave, se eles o deixam solto com nossa filha — observou papai. Atrás de mim, a TV estava ligada, então ele e Patrick podiam assistir ao jogo de futebol. De vez em quando, eles paravam, suas bocas interrompendo a mastigação enquanto acompanhavam um passe ou uma falta. 

— Acho que é uma grande oportunidade. Ela vai trabalhar numa das mansões. Para uma boa família. Eles são bacanas, querida? 

Na nossa rua, ser “bacana” significa qualquer pessoa sem um parente que tenha sido criminalmente acusado de perturbação da ordem pública.

 — Acho que sim. 

— Espero que você tenha agido de maneira educada. — Papai sorriu com malícia.

 — Você chegou a conhecê-lo? — Treena se debruçou para impedir que Thomas derrubasse, com o cotovelo, seu suco no chão.

 — O aleijado? Como ele é? 

— Vou conhecê-lo amanhã.

 — Estranho. Você vai ficar o dia inteiro com ele. Nove horas. Vai vê-lo mais do que vê Patrick.

 — O que não é difícil — falei.

 Do outro lado da mesa, Patrick fingiu não ter escutado. 

— Apesar disso, não vai ter de se preocupar com aquela velha história de assédio sexual, certo? — insinuou papai. 

— Bernard! — exclamou minha mãe, ríspida.

 — Eu apenas disse o que todo mundo está pensando. Esse é provavelmente o melhor patrão que você poderia arrumar para a sua namorada, hein, Patrick?

 Do outro lado da mesa, Patrick sorriu. Estava ocupado em recusar batatas, apesar dos melhores esforços de mamãe. Ele estava no mês carboidrato zero, preparando-se para participar de uma maratona no começo de março. 

— Sabe, eu estava pensando: você vai ter de aprender a linguagem dos sinais? Quer dizer, se ele não fala, como você vai saber o que ele quer? 

— Ela não disse que ele não fala, mamãe. 

Na verdade, eu não conseguia me lembrar do que a Sra. Traynor tinha dito. Ainda estava um pouco chocada por ter conseguido um emprego. 

— Talvez ele fale por um daqueles aparelhos. Como aquele cientista. O dos Simpsons. 

— Veado — disse Thomas. 

— Não — disse papai. 

— Stephen Hawking — disse Patrick.

 — É você, é culpa sua— respondeu mamãe, olhando acusadoramente de Thomas para papai. Um olhar tão afiado que dava para cortar um bife. — Fica ensinando Thomas a falar coisas feias. 

— Não sou, não. Não sei de onde ele está tirando isso. 

— Veado — repetiu Thomas, olhando diretamente para seu avô. 

Treena fez uma careta.

— Acho que eu ficaria louca se o homem falasse comigo por aqueles aparelhos sintetizadores de voz. Imagina só! Me-dá-um-copo-de-água — ela imitou.

 Brilhante. Mas não o suficiente para impedi-la de embarrigar, como resmungava papai de vez em quando. Ela tinha sido a primeira integrante da nossa família a ir para a universidade, até que o nascimento de Thomas obrigou-a a largar o curso no último ano. Papai e mamãe ainda têm esperança de que um dia ela traga fortuna para nossa família. Ou talvez trabalhe num lugar com mesa de recepção que não tenha uma tela de segurança feita de aço galvanizado ao redor. Qualquer um dos dois serviria.

 — Por que andar de cadeira de rodas significa que ele tenha de falar como um Dalek? — perguntei. 

— Mas você terá de se tornar próxima e íntima dele. No mínimo, limpar sua boca e dar de beber a ele, essas coisas.

 — E daí? Não se trata de Engenharia Espacial. 

— Falou a mulher que colocava a fralda de Thomas pelo avesso. 

— Aconteceu só uma vez.

 — Duas. E você só trocou a fralda dele três vezes.

 Servi-me de ervilhas fingindo que estava mais confiante do que estava.

 Mas, já no ônibus de volta para casa, os mesmos pensamentos começaram a zunir em minha cabeça. Sobre o que iríamos conversar? E se ele ficasse olhando para mim, a cabeça pendendo, o dia inteiro? Eu ficaria apavorada? E se eu não conseguisse entender o que ele queria? Eu era famosa por não cuidar das coisas, não tínhamos mais plantas em casa, nem bichos de estimação, depois das tragédias que foram o hamster, os bichos-paus e Randolph, o peixinho dourado. E quantas vezes aquela mãe empertigada ficaria por perto? Não gostava da ideia de ser vigiada o tempo todo. A Sra. Traynor parecia o tipo de mulher cujo olhar transformava mãos hábeis em um emaranhado de dedos. 

— Então, Patrick, o que você acha disso tudo?

 Patrick tomou um longo gole de água e deu de ombros.

 Lá fora, a chuva batia nas vidraças e se fazia ouvir suavemente por cima do tinir de pratos e talheres.

 — É um bom salário, Bernard. Melhor do que trabalhar à noite na fábrica de frangos, de qualquer jeito. 

Houve um murmúrio geral de concordância na mesa. 

— Bom, tem algum significado quando o melhor que se pode dizer da minha nova carreira é que é um trabalho melhor do que ficar levando carcaças de frango de um lado para outro dentro de um galpão — falei. 

— Bom, enquanto isso, sempre dá para você entrar em forma e fazer algumas coisas de personal training com o Patrick aqui. 

— Entrar em forma. Obrigada, papai. — Eu estava prestes a pegar mais uma batata e mudei de ideia. 

— Ué, por que não? — Mamãe deu a impressão de que ia se sentar, todo mundo parou, mas não, ela se levantou de novo e foi ajudar vovô com o molho da carne. — Pode ser bom, tendo em vista seu futuro. Você sem dúvida tem o dom do papo. 

— Ela tem o dom da papada. — Papai riu. 

— Eu consegui um emprego — argumentei. — Que paga mais que o anterior, se me permitem lembrar.

 — Mas é apenas temporário — interrompeu Patrick. — Seu pai tem razão. Você deveria pensar em ficar em forma enquanto isso. Você seria ser uma boa personal trainer, se se empenhasse um pouco. 

— Eu não quero ser personal trainer. Não gosto… de toda aquela… pulação. — Movi os lábios em um xingamento mudo para Patrick, que riu com deboche. 

— O que Lou quer é um emprego onde possa ficar de pés para cima e assistir à TV enquanto um velho paralítico se alimenta com um canudinho — disse Treena.

 — É. Porque arrumar dálias murchas em jarros com água exige muito esforço mental e físico, não é, Treen? 

— Estamos brincando com você, querida. — Papai levantou sua xícara de chá. — É ótimo que tenha conseguido um trabalho. Já estamos orgulhosos de você. E aposto que quando puser seus pezinhos naquela mansão, aqueles viados não vão mais querer largar de você. 

— Viados — repetiu Thomas. 

— Não fui eu — disse papai, mastigando, antes que mamãe pudesse abrir a boca.


Capítulo 3

— Aqui é o anexo. Eram as estrebarias, mas percebemos que serviria um pouco melhor ao Will do que a casa, já que fica tudo em apenas um andar. Este é o quarto de hóspedes, pois assim Nathan pode passar a noite aqui caso seja necessário. No começo, precisávamos sempre de alguém. 

A Sra. Traynor andava rápido pelo corredor, gesticulando de uma porta a outra, sem olhar para trás, os saltos estalando no piso de pedras. Parecia haver uma expectativa de que eu fosse parar. 

— As chaves do carro ficam aqui. Incluí você no nosso seguro. Estou confiando que as informações que você me deu estejam corretas. Nathan pode lhe mostrar como funciona a rampa de acesso. Basta ajudar Will a ficar na posição correta que o carro faz o restante. Mas… no momento ele não está desesperadamente ávido para ir a lugar nenhum.

 — Está um pouco frio — falei.

 A Sra. Traynor pareceu não ouvir. 

— Você pode preparar seu chá e seu café na cozinha. Mantenho o armário abastecido. O banheiro é por aqui… 

Ela abriu a porta e olhei para o guincho de metal e plástico brancos que estava em cima da banheira. Havia uma área molhada sob o chuveiro, com uma cadeira de rodas dobrada ao lado. No canto, um armário com porta de vidro mostrava pilhas arrumadas de fardos de papel devidamente embalados. Não sabia para o que serviam, mas tudo ali exalava um leve cheiro de desinfetante.

 A Sra. Traynor fechou a porta e virou-se brevemente para me olhar.

 — Devo reiterar que é muito importante que Will esteja sempre acompanhado. A cuidadora anterior sumiu por várias horas para consertar o próprio carro e Will… se machucou durante a ausência. — Ela engoliu em seco, como se ainda estivesse traumatizada pela lembrança.

 — Não vou a lugar algum. 

— É lógico que você precisa de… intervalos. Só quero deixar claro que ele não pode ficar sozinho por mais de, digamos, dez ou quinze minutos. Se houver uma emergência, use o interfone, já que meu marido Steven deve estar em casa, ou ligue para o meu celular. Se você precisar sair, gostaria que avisasse com a maior antecedência possível. É difícil arrumar alguém para cobrir ausências.

 — Não é fácil mesmo.

 A Sra. Traynor abriu o armário do corredor. Ela falou como alguém que recita um discurso bem ensaiado.

 Pensei brevemente em quantos cuidadores já tinham tido antes de mim. 

— Se Will estiver ocupado, seria bom que você fizesse o básico para manter o anexo limpo e organizado. Lavar a roupa de cama, passar um aspirador por aí, essas coisas. O material de limpeza fica embaixo da pia. Talvez ele não queira você por perto o tempo todo. Você e ele têm de encontrar sua própria forma de se relacionarem. 

A Sra. Traynor olhou as minhas roupas como se as visse pela primeira vez. Eu estava com o colete peludo que papai diz que me deixa parecida com um avestruz. Tentei sorrir. Pareceu um esforço.

 — Obviamente, espero que vocês consigam… se entender bem. Seria ótimo se ele pudesse pensar em você como uma amiga em vez de uma profissional paga para isso. 

— Certo. O que ele… hum… gosta de fazer? 

— Ele assiste a filmes. Às vezes, ouve rádio ou música. Tem uma daquelas coisas digitais. Se você colocar perto da mão dele, ele consegue, geralmente, operar sozinho. Tem um pouco de movimento nos dedos, embora sinta dificuldade de segurar.

 Fui me alegrando. Se ele gostava de música e cinema, claro que poderíamos encontrar algo em comum, não? Imaginei de repente eu e aquele homem rindo de alguma comédia hollywoodiana, eu passando o aspirador pelo quarto enquanto ele ouvia música. Talvez fosse dar certo. Talvez acabássemos amigos. Nunca tive um amigo deficiente físico, exceto por David, amigo de Treen, que era surdo, mas que ficava furioso se alguém sugerisse que isso era uma deficiência.

 — Tem alguma pergunta? 

— Não. 

— Então vamos entrar e apresentar vocês. — Ela olhou para o relógio de pulso. — Nathan deve ter terminado de vesti-lo. 

Hesitamos do lado de fora da porta e a Sra. Traynor bateu. 

— Oi, estão aí? Will, trouxe a Srta. Clark para conhecer você.

 Não houve resposta.

 — Will? Nathan? 

Um forte sotaque neozelandês. 

— Ele está arrumado, Sra. T. 

Ela abriu a porta. A sala do anexo era ilusoriamente enorme, pois uma das paredes era feita totalmente de portas de vidro que se abriam para o campo. Uma lareira crepitava baixinho no canto e um sofá bege com almofadas cobertas por uma manta de lã ficava de frente para uma grande TV de tela plana. O clima do ambiente era elegante e tranquilo: como o apartamento de um escandinavo solteiro.

 No meio da sala havia uma cadeira de rodas preta, com assento e encosto forrados por pele de carneiro. Um homem solidamente forte, de jaleco sem gola, estava abaixado, arrumando os pés de outro no apoio da cadeira de rodas. Assim que entramos no quarto, o homem na cadeira olhou por baixo de uma cabeleira despenteada. Seus olhos encontraram os meus e, após uma pausa, ele soltou um gemido horripilante. Então, sua boca se retorceu e ele deixou sair outro grito fantasmagórico. 

Senti sua mãe se empertigar.

 — Will, pare com isso! 

Ele nem olhou para ela. Outro som pré-histórico emergiu de algum lugar próximo a seu peito. Era um som terrível, agonizante. Tentei não vacilar. O homem fez uma careta, sua cabeça balançou e afundou em seus ombros enquanto ele começou a me encarar através de feições distorcidas. Parecia grotesco e vagamente irritado. Percebi que na mão em que eu segurava minha bolsa os nós dos meus dedos ficaram brancos. 

— Will! Por favor. — Havia um leve tom de histeria na voz de sua mãe. — Por favor, não faça isso. 

Meu Deus, pensei. Não estou pronta para isso. Engoli em seco, com esforço. O homem continuava a me encarar. Ele parecia esperar que eu fizesse alguma coisa.

 — Eu… eu sou Lou. — Minha voz, incomumente trêmula, quebrou o silêncio. Pensei por um breve momento se estendia a mão, então, me lembrando de que ele não poderia segurá-la, dei um leve aceno. — Diminutivo de Louisa.

 Então, para meu espanto, suas feições se desanuviaram e sua cabeça se endireitou sobre o pescoço. 

Will Traynor me olhou firmemente, com o mais leve dos sorrisos tremulando em seu rosto.

 — Bom dia, Srta. Clark — disse ele. — Soube que é minha nova guarda-costas. 

Nathan tinha terminado de arrumar o descanso dos pés na cadeira de rodas. Balançou a cabeça ao se levantar. 

— Você é um homem perverso, Sr. T. Muito perverso. — Ele sorriu com deboche e esticou uma manzorra, que eu apertei flacidamente. Nathan transpirava um ar de imperturbabilidade. — Acredito que você tenha acabado de assistir à melhor imitação de Christy Brown, de Meu pé esquerdo. Você vai se acostumar com ele. Ele late mais do que morde. 

A Sra. Traynor segurava com os delicados dedos brancos o crucifixo em seu pescoço. Puxava-o de um lado para outro na fina corrente dourada, um tique nervoso. Sua expressão estava dura. 

— Vou deixar vocês se entenderem. Podem usar o interfone se precisarem de ajuda. Nathan vai contar sobre a rotina de Will e o equipamento que ele usa. 

— Estou aqui, mãe. Você não precisa falar como se eu não estivesse. Meu cérebro não está paralisado. Ainda.

 — Sim, bom, se você vai se portar de maneira desagradável, Will, acho que é melhor a Srta. Clark falar direto com Nathan. — Percebi que a mãe não olhava para ele quando falava. Manteve seu olhar no chão, a uns três metros além de onde ele estava. — Vou trabalhar de casa hoje. Apareço na hora do almoço, Srta. Clark.

 — Certo. — Minha voz saiu como um grasnado. 

A Sra. Traynor sumiu. Ficamos calados enquanto ouvíamos seus passos ligeiros sumirem pelo corredor em direção à casa principal. 

Nathan então rompeu o silêncio.

 — Will, você se importa se eu falar de seus remédios com a Srta. Clark? Quer assistir à TV? Ouvir música? 

— Rádio, estação quatro, por favor. 

— Claro. 

Fomos para a cozinha.

 — A Sra. T. disse que você não tem muita experiência com tetraplégicos, certo? 

— É.

 — Certo. Vamos começar com as coisas razoavelmente simples hoje. Aqui tem uma pasta com praticamente tudo o que você precisa saber a respeito das rotinas de Will e com todos os telefones de emergência. Sugiro que você leia quando tiver um tempo livre. Imagino que vá ter algum.

 Nathan pegou uma chave de seu cinto e abriu um armário cheio de caixas e frasquinhos plásticos de remédios.

— Certo. Isso é mais a minha parte, mas você precisa saber onde está tudo, para o caso de emergências. Há um quadro de horários na parede, então você pode verificar quando e o que ele toma por dia. Qualquer remédio a mais que você der, marque aqui — ele mostrou —, mas é melhor checar tudo com a Sra. T., pelo menos por enquanto.

— Não sabia que eu teria de lidar com remédios. 

— Não é difícil. Ele sabe quase tudo o que toma. Mas pode precisar de uma pequena ajuda para engolir. Costumamos usar esse copo especial. Você pode amassar com este pilão de mármore e colocar em algum líquido. 

Peguei uma das embalagens. Acho que nunca tinha visto tantos remédios fora de uma farmácia. 

— Certo. Ele toma dois remédios para pressão: este, para baixar na hora de dormir; este, para subir quando acorda. Estes, ele usa quase sempre para controlar os espasmos musculares: você precisa dar um no meio da manhã e outro no meio da tarde. Ele não acha esses difíceis de engolir, porque são pequenos e revestidos. Estes são para espasmos da bexiga, e estes são para refluxo ácido. Às vezes, ele precisa tomar após a refeição, se sentir desconforto. Este é o anti-histamínico da manhã, e estes são os sprays nasais, mas costumo ministrá-los antes de ir embora, então você não precisa se preocupar. Ele pode tomar paracetamol se estiver com dor, e também tem essa pílula para dormir, que ele toma de vez em quando, mas que costuma deixá-lo mais irritado durante o dia, por isso procuramos restringir.

 “Estes”, Nathan continuou, mostrando outro frasco, “são os antibióticos que toma a cada duas semanas para a troca do cateter. Eu mesmo dou, a menos que não esteja aqui, nesse caso, deixarei instruções claras. São muito fortes. Temos caixas com luvas de borracha, se você precisar limpá-lo por algum motivo. Tem também essa pomada, para o caso de ele ter escaras, mas ele está muito bem para o caso de ele ter desde que chegou o colchão de ar.

 Enquanto eu estava ali parada, Nathan tirou do bolso uma chave e me entregou.

 — Esta é a chave reserva — disse. — Não deve ser dada a ninguém. Nem mesmo a Will, certo? Proteja-a como se fosse sua vida. 

— É muita coisa para lembrar. — Engoli em seco.

 — Está tudo escrito. Por hoje, você só precisa lembrar dos antiespasmódicos. Aqueles ali. O número do meu celular está aqui, se precisar falar comigo. Quando não estou aqui, fico estudando, então queria pedir para não me ligar muito, mas fique à vontade até se sentir segura. 

Olhei bem para a pasta na minha frente. Era como se eu fosse fazer uma prova para a qual não estudei. 

— E se ele precisar… ir ao banheiro? — Pensei no aparelho de içar. — Não sei se consigo, você sabe, erguê-lo. — Tentei fazer com que meu rosto não transparecesse pânico. 

Nathan balançou a cabeça. 

— Não precisa fazer nada disso. O cateter cuida do assunto. Na hora do almoço estou aqui para trocar tudo. Sua função não envolve nenhum esforço físico.

 — Qual é a minha função? 

Nathan estudou o chão antes de me encarar. 

— Tentar animá-lo um pouco? Ele é… ele é meio mal-humorado. O que é compreensível, dadas… as circunstâncias. Mas você vai precisar ser um pouco casca-grossa. Aquela pequena cena cômica da manhã é o jeito que ele tem de desestabilizá-la.

 — Por isso o salário é tão bom? 

— Ah, sim. Não existe almoço grátis, não é? — Nathan me deu um tapinha no ombro. Senti meu corpo reverberar com o gesto. — Ah, ele é legal. Não precisa pisar em ovos com Will. — Ele hesitou. — Gosto dele. 

Ele disse isso como se fosse a única pessoa que gostava de Will. 

Fui atrás dele até a sala. A cadeira de Will Traynor tinha se movido até a janela e ele estava de costas para nós, olhando para fora, ouvindo algo no rádio. 

— Acabei, Will. Quer alguma coisa antes que eu saia? 

— Não. Obrigado, Nathan. 

— Deixo você sob os eficientes cuidados da Srta. Clark, então. A gente se vê no almoço, companheiro. 

Com uma crescente sensação de pânico, vi o simpático cuidador vestir seu casaco. 

— Divirtam-se, pessoal. — Nathan piscou para mim e então se foi. 

Fiquei no meio da sala, mãos enfiadas nos bolsos, incerta sobre o que fazer. Will Traynor continuava a olhar pela janela, como se eu não estivesse ali.

 — Quer que eu lhe prepare uma xícara de chá? — perguntei, enfim, quando o silêncio ficou insuportável. 

— Ah. Sim. A garota que faz chá para viver. Estava pensando quanto tempo ia demorar para você mostrar suas habilidades. Não. Não, obrigado.

 — Café, então? 

— Nada de bebidas quentes para mim agora, Srta. Clark.

 — Pode me chamar de Lou.

 — Isso vai ajudar?

 Pisquei, minha boca ligeiramente aberta. Fechei-a. Papai sempre dizia que aquilo me fazia parecer mais boba do que eu realmente era. 

— Bom… posso lhe preparar alguma coisa? 

Ele virou-se para mim. Seu rosto estava coberto por uma barba por fazer de várias semanas e os olhos eram indecifráveis. Ele virou-se para o outro lado. 

— Vou… — dei uma olhada no cômodo. — Vou ver se tem alguma coisa para lavar, então.

Saí da sala, o coração batendo forte. Na segurança da cozinha, saquei meu celular e digitei uma mensagem de texto para minha irmã.

É horrível. Ele me odeia. 

A resposta veio em segundos.

 Você só está aí há uma hora, sua covarde! Mãe e pai muito preocupados com dinheiro. Segura a onda e pense em quanto ganha por hora. Bj 


Fechei o celular com um estrépito e suspirei. Fui até o cesto de roupa suja no banheiro, tentando calcular meio quilo de roupa, e fiquei alguns minutos verificando as instruções da máquina de lavar. Não queria desprogramar nem fazer qualquer coisa para Will ou a Sra. Traynor me olharem de novo como se eu fosse idiota. Liguei a máquina e fiquei lá, pensando o que mais poderia legitimamente fazer. Tirei o aspirador de pó do armário e limpei todo o corredor, mais os dois quartos, pensando que, se meus pais pudessem me ver, insistiriam para tirar uma foto comemorativa. O quarto extra estava quase vazio, como um quarto de hotel. Desconfiei de que Nathan não costumava dormir lá. Pensei que eu provavelmente não poderia culpá-lo.

 Hesitei do lado de fora do quarto de Will Traynor, e enfim concluí que o local precisava ser aspirado como qualquer outro lugar da casa. Uma das paredes era coberta por uma estante embutida com uns vinte porta-retratos. 

Enquanto aspirava ao redor da cama, eu me permiti dar uma olhada neles. Havia um homem saltando de bungee jump de um abismo, os braços abertos como uma estátua do Cristo. Uma foto de um homem que poderia ser Will numa espécie de selva, e outra dele em meio a um grupo de amigos bêbados. Os homens estavam de smoking, uns com as mãos nos ombros dos outros. 

Lá estava ele numa rampa de esqui, ao lado de uma garota de óculos escuros e longos cabelos louros. Parei para vê-lo melhor de óculos de esqui. Estava com o rosto barbeado e, mesmo na luz intensa, exibia aquela luminosidade cara que os endinheirados conseguem ter ao saírem de férias três vezes ao ano. Tinha ombros largos e fortes, o que dava para ver mesmo sob o casaco de neve. Coloquei a foto com cuidado na mesa e continuei a aspirar ao redor da cabeceira da cama. Finalmente, desliguei o aspirador e comecei a enrolar o ào. Quando me abaixei para tirar o plugue da tomada da parede, notei um movimento pelo canto do olho e pulei, dando um gritinho. Will Traynor me olhava da porta. 

— Estação de esqui de Courchevel. Há dois anos e meio.

 Corei. 

— Desculpe. Eu estava só… 

— Você estava só olhando as minhas fotos. Pensando como deve ser horrível ter tido uma vida assim e depois virar um aleijado.

 — Não. — Corei ainda mais intensamente. 

— O restante das minhas fotos estão na gaveta de baixo, caso você fique de novo muito curiosa — disse ele. 

Então, com um leve zunido, a cadeira de rodas virou à direita e sumiu.

 * * *

 A manhã resolveu durar anos. Eu não me lembrava da última vez em que as horas e os minutos tinham se esticado tão interminavelmente. Tentei encontrar o máximo de ocupações e entrei na sala tão raramente quanto possível, sabendo que estava sendo covarde, mas não me importando com isso. 

Às onze, levei água num copo especial, parecido com um copo de treinamento para crianças, e o medicamento antiespasmódico, como Nathan tinha recomendado. Coloquei o comprimido na língua dele e mostrei o copo, como Nathan me ensinara. O copo era descorado, de plástico opaco, o tipo da coisa que Thomas tinha usado, só que sem a estampa de Bob, o Construtor. Will engoliu com certo esforço e fez sinal para que eu o deixasse sozinho.

 Tirei o pó de algumas prateleiras que não precisavam realmente ser espanadas e pensei em limpar umas janelas. O anexo estava silencioso, exceto pelo zunido baixo da TV na sala onde Will estava. Não me senti segura o suficiente para ligar o rádio na cozinha. Tinha a impressão de que ele ia fazer alguma crítica ríspida sobre a minha escolha.

 Ao meio-dia e meia, Nathan chegou, trazendo consigo o ar frio da rua, e levantou uma sobrancelha. 

— Tudo bem? — perguntou.

 Poucas vezes na vida fiquei tão contente de ver alguém. 

— Sim. 

— Certo. Você pode parar meia hora, agora. O Sr. T. e eu precisamos fazer algumas coisas nesse horário.

 Praticamente corri para pegar meu casaco. Não tinha planejado sair para almoçar, mas quase desmaiei de alívio por deixar aquela casa. Levantei a gola do casaco, pendurei a bolsa no ombro e caminhei a passos ligeiros pelo caminho para carros, como se realmente tivesse algum lugar para onde ir. Na verdade, apenas andei pelas ruas ao redor durante meia hora, a respiração formando nuvens quentes no meu cachecol bem enrolado.

 Depois que o The Buttered Bun fechou, não existiam mais cafés naquele ponto da cidade. O castelo estava abandonado. O lugar mais próximo em que se podia comer era um pub elegante, o tipo de lugar onde eu provavelmente não conseguiria pagar uma bebida, muito menos um almoço rápido. Todos os carros no estacionamento eram enormes e caros, com placas novas. 

Parei no estacionamento do castelo, certificando-me de que não seria vista da Granta House, e liguei para minha irmã. 

— Oi. 

— Você sabe que não posso falar no trabalho. Você não largou o emprego, largou? 

— Não. Só precisava ouvir uma voz amigável.

 — O homem é tão ruim assim? 

— Treen, ele me odeia. Ele me olha como se eu fosse uma coisa que o gato trouxe na boca. E ele nem toma chá. Estou fugindo dele. 

— Não acredito que eu esteja ouvindo isso. 

— O quê? 

— Fale com ele, pelo amor de Deus. Claro que ele se sente infeliz. Está preso a uma maldita cadeira de rodas. E você certamente está sendo inútil. Apenas fale com ele. Conheça-o. Qual a pior coisa que pode acontecer? 

— Não sei… não sei nem se aguento. 

— Não vou contar para mamãe que você desistiu do emprego depois de apenas metade do expediente. Não vão lhe pagar nada, Lou. Você não pode fazer isso. Não podemos deixar que você faça isso. 

Ela estava certa. Percebi que odiava minha irmã.

 Houve um breve silêncio. A voz de Treen ficou estranhamente conciliatória. Aquilo era mesmo preocupante. Significava que ela sabia que eu estava mesmo no pior emprego do mundo. 

— Olhe, são só seis meses — disse ela. — Fique os seis meses, tenha algo útil no seu currículo e pode conseguir um emprego de que realmente goste. E, ei… veja as coisas por esse lado, pelo menos você não está trabalhando no turno da noite na fábrica de frango, certo?

 — Noites na fábrica de frango parecem férias se comparadas com… 

— Estou indo, Lou. Nos vemos depois. 

* * * 

— Gostaria de ir a algum lugar esta tarde? Podíamos ir de carro, se você quiser. 

Nathan tinha saído fazia quase meia hora. Eu tinha prolongado a lavagem das xícaras de chá pelo tempo máximo humanamente possível e achava que, se passasse mais uma hora naquela casa silenciosa, minha cabeça explodiria.

 Ele virou-se para mim. 

— O que você tem em mente? 

— Não sei. Dar uma volta pelo campo? 

Eu estava fazendo uma coisa que costumo fazer às vezes: fingir que sou Treena. Ela é uma pessoa totalmente calma e competente, por isso ninguém jamais se irrita com ela. Aos meus ouvidos, eu soava profissional e animada.

 — O campo — ele disse, como se considerasse a ideia. — Para vermos o quê? Árvores? Céu? 

— Não sei. O que você costuma fazer? 

— Eu não faço nada, Srta. Clark. Não posso mais fazer nada. Eu fico sentado. Apenas existo.

 — Bom — falei. — Disseram que você tem um carro adaptado para cadeira de rodas, não? 

— E você acha que vai parar de funcionar se não for usado todos os dias?

— Não, mas eu… 

— Está dizendo que eu devia sair? 

— Eu só pensei… 

— Que uma voltinha de carro me faria bem? Um pouco de ar fresco? 

— Estou apenas tentando… 

— Srta. Clark, minha vida não vai melhorar muito se eu der uma volta pelos campos de Stortfold. — Ele virou-se para o outro lado.

A cabeça estava enfiada nos ombros e me perguntei se ele estava se sentindo bem. Não era hora de perguntar. Fiquei calada.

 — Quer que eu traga o seu computador?

 — Acha que eu podia participar de um bom grupo virtual de tetraplégicos? Tetra-Nós? O Clube das Rodas de Metal? 

Respirei fundo e tentei fazer com que minha voz soasse confiante.

 — Certo…bom… já que vamos ficar o tempo todo juntos, talvez pudéssemos saber um pouco um do outro…

 Alguma coisa no rosto dele me fez vacilar. Olhava firme para a parede, com um tremor no maxilar. 

— É que… é muito tempo para ficar com alguém. O dia inteiro — prossegui. — Talvez, se você puder me contar um pouco o que quer fazer, do que gosta, então eu poderia… garantir que as coisas sejam como você gosta? 

Desta vez, o silêncio foi doloroso. Ouvi minha voz ser lentamente engolida pela ausência de sons, e não sabia o que fazer com as mãos. Treena e seu jeito competente sumiram. 

Finalmente, a cadeira de rodas zuniu e ele virou-se lentamente para mim. 

— Eis o que sei a seu respeito, Srta. Clark. Minha mãe disse que você é falante. — Ele disse isso como se fosse um incômodo. — Vamos combinar uma coisa? Daqui por diante, pode ser desfalante? 

Engoli em seco, sentindo o rosto em chamas. 

— Claro — respondi, quando consegui falar. — Estou na cozinha. Se quiser alguma coisa, chame. 

* * *

 — Você não pode desistir. 

Eu estava atravessada na cama, com as pernas esticadas na parede, como eu fazia quando adolescente. Estava assim desde o jantar, o que não era comum para mim. Desde que Thomas nasceu, ele e Treena passaram para o quarto maior e eu fiquei no quartinho, que era tão pequeno que dava claustrofobia se alguém ficasse lá mais de meia hora. 

Mas eu não queria ficar no andar de baixo com mamãe e vovô porque ela ficava me olhando preocupada e dizendo coisas como “vai melhorar, querida” e “no primeiro dia, nenhum emprego é maravilhoso” como se ela tivesse tido um único emprego nos últimos vinte anos. Eu me sentia culpada. E não tinha feito nada para isso. 

— Eu não disse que ia desistir. 

Treena entrou no quartinho sem bater, como fazia todos os dias, embora eu sempre tivesse de bater de leve no quarto dela, para o caso de Thomas estar dormindo. 

— Eu podia estar nua. Você podia pelo menos avisar antes de entrar.

 — Já vi coisas piores. Mamãe acha que você vai pedir demissão. 

Escorreguei as pernas pela parede e me sentei na cama. 

— Céus, Treen. Aquele trabalho é pior do que pensei. Ele é péssimo. 

— É paralítico. Claro que se sente péssimo. 

— Não, ele é sarcástico e mesquinho comigo. Toda vez que digo ou sugiro alguma coisa, ele me olha como se eu fosse idiota, ou diz algo que me faz sentir com dois anos de idade. 

— Provavelmente, você disse algo idiota. Vocês precisam apenas se acostumar um com o outro. 

— Não disse nada idiota. Eu tomo muito cuidado. Quase só digo “quer dar uma volta de carro?” ou “quer uma xícara de chá?”

 — Bom, vai ver que no começo ele é assim com todo mundo para ver até onde a pessoa aguenta. Aposto que ele já teve dezenas de cuidadoras.

 — Ele não quer nem que eu fique no mesmo cômodo que ele. Não sei se aguento, Katrina. Não sei mesmo. Sinceramente… só indo lá para você entender. 

Treena não disse nada, ficou me olhando. Levantou-se e olhou a porta, como se quisesse conferir se tinha alguém no andar. 

— Estou pensando em voltar à faculdade — ela disse, por fim.

 Meu cérebro levou alguns segundos para registrar a mudança de assunto.

 — Ah, meu Deus. Mas… — falei. 

— Vou pedir um empréstimo para pagar a anuidade. E posso conseguir algum benefício especial porque tenho Thomas e a faculdade oferece preços menores porque eles… — Ela deu de ombros, um pouco constrangida. — Eles dizem que posso me destacar. Alguém largou o curso de administração, então eles me aceitam no começo do próximo semestre letivo.

 — E Thomas? 

— O campus tem uma creche. Passaremos a semana nos apartamentos subsidiados e voltaremos para cá nos fins de semana.

 — Ah. 

Notei que ela me observava. Eu não sabia o que fazer com a minha cara. 

— Estou louca para usar a cabeça de novo. Fazer arranjos de flores está acabando comigo. Quero estudar. Quero melhorar de vida. E não aguento minhas mãos sempre geladas por causa da água. 

Olhamos as duas para as mãos dela, que estavam rosadas mesmo no calor tropical do interior da casa. 

— Mas… 

— Sim. Não vou trabalhar, Lou. Não vou dar nada para mamãe. Pode… pode ser até que eu precise da ajuda deles. — Nesse ponto, ela pareceu bastante desconfortável. A expressão, quando olhou para mim, era quase de desculpas. 

No andar de baixo, mamãe ria de alguma coisa na TV. Falou com o vovô. Ela costumava explicar a história para ele, mesmo que sempre disséssemos que não precisava. Não consegui falar. As palavras de minha irmã foram ganhando sentido de forma lenta, mas inexorável. Eu me sentia como uma vítima da máfia vendo o concreto endurecer em torno de seus tornozelos.

 — Tenho de fazer isso, Lou. Quero mais para Thomas, mais para nós dois. O único jeito de conseguir alguma coisa é voltando a estudar. Não tenho um Patrick. Nem sei se um dia terei, já que ninguém tem o menor interesse por mim depois que tive Thomas. Preciso fazer o melhor sozinha. 

Como eu não disse nada, ela acrescentou: 

— Para mim e para Thomas. 

Concordei com a cabeça.

 — Lou? Por favor?

 Nunca vi minha irmã assim. Fiquei muito sem jeito. Levantei a caneca e dei um sorriso. Quando minha voz surgiu, não parecia minha.

 — Bom, é como você diz. É só questão de se acostumar com ele. É sempre difícil nos primeiros dias, não é?


Capítulo 4

Passaram-se duas semanas, e com elas surgiu uma espécie de rotina. Todos os dias eu chegava na Granta House às oito da manhã, avisava que estava lá e, quando Nathan terminava de ajudar Will a se vestir, eu ouvia cuidadosamente ele me dizer o que eu precisava saber a respeito dos medicamentos de Will e, o mais importante, como estava o humor dele.

Depois que Nathan saía, eu sintonizava o rádio ou a TV para Will, dava seus comprimidos, às vezes amassando-os no pequeno pilão de mármore. Geralmente, depois de mais ou menos dez minutos ele deixava claro que estava cansado da minha presença. Eu então realizava com dificuldade as pequenas tarefas domésticas do anexo, lavando panos de prato que não estavam sujos ou usando partes aleatórias do aspirador para limpar os menores cantinhos de cortinas ou peitoris de janelas, enfiando minha cabeça pela porta religiosamente a cada quinze minutos, conforme a Sra. Traynor me pedira. E, quando eu fazia isso, Will continuava sentado em sua cadeira, olhando para fora na direção do jardim. 

Mais tarde, eu levava um copo d’água, ou uma daquelas bebidas calóricas que serviam supostamente para manter seu peso e que pareciam cola para papel de parede num tom pastel, ou lhe dava comida. Ele podia mexer um pouco as mãos, mas não os braços, por isso precisava ser alimentado garfada a garfada. Essa era a pior parte do dia; parecia errado que, de algum modo, um adulto recebesse comida na boca e meu embaraço me fazia parecer desajeitada e inábil. Will odiava tanto isso que não conseguia nem me olhar enquanto eu o alimentava.

 E então, pouco antes da uma da tarde, Nathan chegava e eu pegava o meu casaco e sumia para andar pelas ruas. Às vezes comia meu almoço no ponto de ônibus que ficava do lado de fora do castelo. Fazia frio e provavelmente eu parecia patética empoleirada ali, comendo sanduíches, mas eu não ligava. Não conseguia passar o dia inteiro dentro daquela casa. 

À tarde, eu colocava um filme — Will era sócio de uma locadora de DVDs e chegavam filmes novos pelo correio todos os dias —, mas ele nunca me convidou para assistir a nenhum com ele, então eu costumava ficar na cozinha ou no quarto extra. Passei a levar um livro ou uma revista, mas me sentia estranhamente culpada por não estar trabalhando de verdade, e não conseguia me concentrar nem um pouco nas palavras. De vez em quando, no final do dia, a Sra. Traynor aparecia — embora nunca falasse muita coisa comigo além do “Está tudo bem?”, cuja única resposta aceitável parecia ser “Sim”. 

Ela perguntava a Will se ele queria alguma coisa, às vezes sugeria algo que ele poderia gostar de fazer no dia seguinte — sair ao ar livre, ou visitar algum amigo que havia perguntado por ele —, e ele quase sempre respondia com desprezo, quando não diretamente com uma grosseria. Ela parecia magoada, corria os dedos por sua correntinha dourada e sumia de novo. 

O pai de Will, um homem gorducho de aparência gentil, costumava chegar quando eu estava saindo. Era o tipo do sujeito que pode ser visto assistindo a um jogo de críquete usando um chapéu panamá e que, aparentemente, desde que se aposentara de seu emprego bem-remunerado na cidade, supervisionava a administração do castelo. Eu desconfiava de que era como um daqueles ricos fazendeiros que de vez em quando planta alguma coisa ele mesmo, só para “manter a mão na massa”. Ele encerrava o expediente todos os dias às cinco em ponto e vinha ver TV com Will. Às vezes, ao sair eu o escutava fazer uma observação sobre alguma coisa do noticiário. 

Precisei prestar muita atenção em Will Traynor naquelas primeiras semanas. Reparei que ele parecia determinado a não lembrar em nada com o homem que tinha sido; deixara seu cabelo castanho-claro crescer em uma bagunça disforme e a barba por fazer se espalhava sobre o rosto. Seus olhos cinzentos tinham marcas de cansaço, ou do desconforto que ele sentia quase o tempo todo (Nathan me disse que ele raramente se sentia bem). Eles levavam o olhar vazio de alguém que está sempre alguns passos afastado do mundo a seu redor. Às vezes, eu me perguntava se aquilo não era um mecanismo de defesa de Will, já que a única maneira que encontrou de lidar com sua vida foi fingir que não era com ele que aquelas coisas estavam acontecendo.

Eu gostaria de sentir pena dele. Eu realmente queria. Quando o pegava olhando para fora através da janela, pensava que ele era a pessoa mais triste que eu já conhecera. E, à medida que os dias se passavam e eu notava que sua condição não tinha relação somente com o fato de estar preso naquela cadeira ou com a perda de sua liberdade física, mas por uma série infinita de problemas de saúde, riscos e desconfortos, concluí que, se eu fosse Will, provavelmente também me sentiria infeliz. 

Mas, meu Deus, ele era horrível comigo. Tinha uma resposta mordaz para tudo o que eu dizia. Se eu queria saber se ele estava bem aquecido, ele retrucava que era suficientemente capaz de me avisar se precisasse de outro cobertor. Se eu perguntava se o aspirador fazia muito barulho — eu não queria atrapalhar seu filme —, Will questionava o porquê daquela pergunta, por acaso eu conseguia fazer o aparelho funcionar em silêncio? Quando eu lhe dava as refeições, ele reclamava que a comida estava quente demais ou fria demais, ou que eu tinha levado a próxima garfada antes de ele ter acabado de mastigar. Ele possuía a habilidade de distorcer quase todas as minhas palavras ou ações, me fazendo parecer uma idiota.

 Nessas duas primeiras semanas, àquei bastante boa em manter uma expressão totalmente neutra, em dar as costas e me retirar para outro cômodo e em falar com ele o mínimo necessário. Comecei a odiá-lo, e tenho certeza de que ele sabia disso.

 Eu não imaginava que fosse possível sentir ainda mais falta do meu antigo emprego. Sentia saudades de Frank e de como ele realmente parecia satisfeito ao me ver quando eu chegava pela manhã. Sentia falta dos clientes, da companhia deles, das conversas fáceis, dos suaves sons de engolir e de coisas sendo mergulhadas em líquidos que pareciam um mar calmo. Aquela casa linda e elegante era vazia e silenciosa como um necrotério. Seis meses, eu repetia mentalmente quando tudo parecia insuportável. Seis meses.

 Então, numa quinta-feira, quando eu estava preparando a bebida hipercalórica que Will tomava no meio da manhã, ouvi a voz da Sra. Traynor no corredor. Só que, dessa vez, havia outras vozes também. Parei, ainda com o garfo na mão. Identifiquei apenas uma voz feminina, jovem e clara, e outra, masculina.

 A Sra. Traynor surgiu na porta da cozinha e tentei parecer ocupada, batendo rápido o suco no copo especial de Will. 

— Misturou na proporção de seis partes de água para quatro de leite? — ela perguntou, observando atentamente a bebida. 

— Sim. É o de morango. 

— Os amigos de Will vieram visitá-lo. Seria melhor se você… — Tenho várias coisas para fazer aqui — falei.

 Na verdade, estava um tanto aliviada por ter sido dispensada de sua companhia durante mais ou menos uma hora. Rosqueei a tampa do copo. 

— As visitas gostariam de um chá ou café?

 Ela ficou quase surpresa.

 — Sim, seria muito simpático. Café. Acho que vou…

 Ela parecia ainda mais tensa que o normal, seu olhar disparando em direção ao corredor, de onde podíamos escutar o murmúrio de vozes. Supus que Will não recebia muitas visitas.

 — Eu acho… vou deixá-los conversar. — Deu uma olhadela para o corredor, seus pensamentos pareciam estar longe. — Rupert. É Rupert, um velho amigo do trabalho — disse ela, virando-se de súbito para mim.

 Tive o pressentimento de que aquele era de certa forma um momento significativo e que ela queria dividir a notícia com alguém, mesmo que fosse comigo. 

— E Alicia. Will e ela foram… muitos próximos… por algum tempo. Café seria adorável. Obrigada, Srta. Clark. 

* * *

 Hesitei por um instante antes de abrir a porta, empurrando-a com o quadril de modo a conseguir equilibrar a bandeja que estava em minhas mãos.

 — A Sra. Traynor disse que gostariam de um café — falei ao entrar, colocando a bandeja na mesa de centro. Quando pus o copo especial de Will no suporte de sua cadeira, virando o canudinho de modo que ele apenas precisasse ajustar a cabeça para alcançá-lo, olhei furtivamente para as visitas. 

Vi primeiro a mulher. Tinha pernas longas e cabelos louros, com a pele num tom levemente dourado. O tipo de mulher que me faz duvidar de que todos os humanos pertençam à mesma espécie. Parecia um puro-sangue. Eu já tinha visto mulheres como aquela algumas vezes, costumavam subir a colina do castelo carregando crianças pequenas que pareciam ter saído de um catálogo de moda e, quando entravam no café, suas vozes eram claras como cristal e despretensiosas ao perguntarem: “Harry, querido, você quer um café? Quer que eu pergunte se fazem macchiato?” Aquela era, sem dúvida, uma mulher macchiato. Tudo nela exalava dinheiro, privilégios e uma vida que parecia sair das páginas de uma revista chique. 

Então olhei a moça mais de perto e concluí que ela a) era a mulher na fotografia de esqui de Will e b) parecia muito, muito desconfortável.

 Ela beijou Will no rosto e depois recuou, sorrindo desajeitadamente. Usava um colete marrom de pele de carneiro, o tipo de coisa que faria com que eu parecesse o Abominável Homem das Neves, e, em volta do pescoço, uma echarpe de cashmere cinza-clara, na qual começou a mexer nervosamente, como se não conseguisse decidir se tiraria ou não. 

— Você parece bem — disse a mulher para ele. — Realmente. Você… deixou o cabelo crescer um pouco. 

Will não falou nada. Ficou só olhando para ela, sua expressão mais indecifrável do que nunca. Senti-me ligeiramente grata por não ser eu a pessoa que era olhada daquele jeito. 

— Cadeira nova, hein? — O homem deu um tapinha nas costas da cadeira de Will, o queixo contraído e a boca voltada para baixo, em sinal de aprovação, como se admirasse um carro esporte de última linha. — É… bem bacana. Muito… high tech. 

Fiquei sem saber o que fazer. Permaneci ali por um momento, trocando o peso do corpo de um pé para outro, até a voz de Will romper o silêncio. 

— Louisa, pode colocar um pouco mais de lenha na lareira? Acho que é preciso aumentar um pouco o fogo. 

Foi a primeira vez que ele pronunciou meu nome de batismo.

 — Claro — concordei.

 Ocupei-me em atiçar o fogo e vasculhei o cesto em busca de toras do tamanho certo. 

— Meu Deus, lá fora está muito frio — disse a mulher. — É ótimo ter uma boa lareira acesa. 

Abri a porta do queimador, cutucando as toras incandescentes com o atiçador. 

— Aqui está uns bons graus mais frio do que em Londres. 

— É, com certeza — concordou o homem. 

— Estou querendo comprar um queimador desse tipo para a minha casa. Parece que é mais eficiente do que uma lareira comum. — Alicia inclinou-se um pouco para examinar o queimador, como se nunca tivesse visto um antes. 

— É, ouvi dizer — disse o homem. 

— Preciso ver isso. É uma dessas coisas que você quer fazer e depois… — calou-se. — O café está delicioso — acrescentou ela, após uma pausa. 

— Então… o que tem feito, Will? — A voz do homem tinha uma espécie de alegria forçada. 

— Pouca coisa, por incrível que pareça. — Mas a fisioterapia e tal. Está indo bem? Alguma… melhora? 

— Rupert, não acredito que eu volte a esquiar tão cedo — disse Will, com a voz transbordando de sarcasmo. 

Quase sorri para mim mesma. Esse era o Will que eu conhecia. Comecei a passar a escova para retirar as cinzas do meio do aquecedor. Tive a impressão de que todos me olhavam. O silêncio pareceu carregado. Ponderei por um instante se a etiqueta de minha blusa de tricô estava para fora e lutei contra a urgência de conferir. 

— Então… — disse Will, enfim. — A que devo o prazer desta visita? Depois de… oito meses? 

— Ah, eu sei. Desculpe. Andei… andei terrivelmente ocupada. Tenho um novo emprego em Chelsea. Sou gerente da loja de Sasha Goldstein. Lembra-se dela? Tenho trabalhado muito nos fins de semana também. A loja fica lotada aos sábados. É muito difícil arrumar tempo livre. — A voz de Alicia tinha ficado frágil. — Liguei umas vezes. Sua mãe lhe disse? 

— As coisas têm estado um pouco complicadas nos Lewins. Você… você sabe como é, Will. Temos um novo sócio. Um camarada de Nova York. Bains. Dan Bains. Chegou a conhecê-lo? 

— Não. 

— O maldito homem parece trabalhar vinte e quatro horas por dia e espera que todo mundo faça o mesmo. — Dava para escutar o alívio do homem por achar um assunto a respeito do qual ele estava confortável. — Você conhece a velha ética de trabalho ianque: nada mais de almoços demorados, nada de piadas sujas… Will, vou lhe contar. Até a atmosfera do lugar mudou.

 — É mesmo? 

— Oh, céus, é. Presenteísmo em larga escala. Às vezes, eu sinto que nem posso me levantar da cadeira. 

Todo o ar da sala pareceu ter sido sugado de repente. Alguém tossiu.

 Levantei-me e limpei as mãos na calça jeans. 

— Eu vou… estou indo pegar mais lenha — murmurei, na direção de Will. 

Peguei o cesto e escapuli. 

O ar estava enregelante, mas me demorei do lado de fora, matando tempo enquanto escolhia pedaços de madeira. Achava que era melhor perder um dedo para o congelamento do que voltar para aquela sala. Mas estava frio demais e o meu indicador, que uso para costurar, começou a ficar azulado e enfim precisei admitir a derrota. Arrastei a lenha o mais lentamente possível, entrando no anexo, e voltei devagar pelo corredor. Ao me aproximar da sala, ouvi a voz da mulher escapando pela porta levemente aberta.

 — Na verdade, Will, há outro motivo para virmos aqui — dizia ela. — Nós… temos uma novidade. 

Vacilei do lado de fora da porta, abraçada ao cesto de lenha. 

— Achei… quer dizer, nós achamos… que… você tinha o direito de saber… mas é o seguinte. Rupert e eu vamos nos casar. 

Fiquei totalmente imóvel, calculando se podia dar meia-volta sem ser ouvida. 

A mulher continuou de maneira pouco convincente: 

— Olha, sei que deve ser um pouco chocante para você. Na verdade, foi um choque também para mim. Nós… isso… bem, as coisas só começaram muito depois que… 

Meus braços começaram a doer. Olhei para baixo, em direção ao cesto, tentando decidir o que fazer. 

— Bom, você sabe que você e eu… nós… 

Outro silêncio pesado.

 — Will, por favor, diga alguma coisa. 

— Parabéns — disse ele, por fim.

 — Sei o que você está pensando. Mas nenhum de nós esperava que isso fosse acontecer. De verdade. Durante um tempo enorme fomos apenas amigos. Amigos que estavam preocupados com você. É que Rupert me deu o apoio mais incrível do mundo depois do seu acidente… 

— Que generoso. 

— Por favor, não fique assim. Isso é tão esquisito. Eu estava completamente apavorada só de pensar em contar para você. Nós dois estávamos. 

— Evidentemente — disse Will, sem inflexão na voz. 

A voz de Rupert os interrompeu.

 — Olha, só estamos contando porque nós dois nos importamos com você. Não queríamos que você soubesse por outra pessoa. Mas a vida continua. Você sabe. Faz dois anos, afinal de contas.

 Fez-se silêncio. Percebi que eu não queria ouvir mais nada e fui me afastando devagar da porta, grunhindo baixo com o esforço. Porém, quando a voz de Rupert voltou, veio em um volume tão maior que eu ainda podia ouvi-lo.

 — Vamos lá, cara. Eu sei que deve ser muitíssimo difícil… tudo isso. Mas, se você se importa com Lissa, deve querer que ela tenha uma vida bacana. 

— Diga alguma coisa, Will. Por favor. 

Eu podia imaginar a cara dele. Eu podia ver aquele olhar que ele fazia, ao mesmo tempo inescrutável e carregado de certo desdém frio. 

— Parabéns — disse Will, finalmente. — Tenho certeza de que serão muito felizes. 

Alicia começou a dizer alguma coisa (algo que não entendi) e foi interrompida por Rupert. 

— Vamos, Lissa. Acho que devemos ir. Will, não viemos aqui esperando a sua bênção. Foi uma gentileza. Lissa pensou… bem, quer dizer, nós dois apenas pensamos… que você devia saber. Desculpe, meu velho. Eu… eu espero que as coisas melhorem para você e que você mantenha contato quando… você sabe… quando a poeira baixar um pouco. 

Ouvi passos e inclinei-me sobre o cesto de lenha, como se tivesse acabado de voltar. Ouvi-os no corredor e então Alicia apareceu na minha frente. Seus olhos estavam vermelhos, como se ela estivesse prestes a chorar. 

— Posso usar o banheiro? — perguntou, com a voz embargada e emocionada. Levantei o dedo devagar e apontei, muda, a direção.

 Então, ela me olhou de maneira dura e percebi que o que eu sentia devia estar estampado em minha cara. Nunca fui muito boa em esconder meus sentimentos. 

— Sei o que você está pensando — disse ela, após uma pausa. — Mas eu tentei. Tentei mesmo. Durante meses. E ele apenas me afastava. — O maxilar dela estava rígido, a expressão estranhamente furiosa. — Ele realmente não me queria aqui. Deixou isso bem claro. 

Parecia esperar que eu dissesse alguma coisa. 

— Não é realmente da minha conta — falei, por fim. 

Nós duas ficamos nos encarando. 

— Sabe, você só pode ajudar alguém que aceita ajuda — disse ela.

 E então ela se foi. 

Esperei alguns minutos, ouvi o barulho do carro deles saindo pela passagem de veículos e então entrei na cozinha. Fiquei por lá e esquentei água na chaleira, ainda que não quisesse tomar chá. Folheei uma revista que já tinha lido. Finalmente, entrei de volta no corredor e, com um grunhido, peguei o cesto de lenha, arrastando-o para a sala de estar, batendo com o objeto delicadamente na porta antes de entrar, para que Will soubesse que eu estava chegando.

 — Estava pensando se você gostaria que eu… — comecei.

 Não havia ninguém lá. 

A sala estava vazia.

 Foi aí que ouvi o estrépito. Lancei-me em direção ao corredor bem a tempo de ouvir outro barulho, seguido pelo som de vidro se estilhaçando. Estava vindo do quarto de Will. Oh, Deus, permita que ele não tenha se machucado. Entrei em pânico, a recomendação da Sra. Traynor girando em minha cabeça. Deixei-o sozinho por mais de quinze minutos. 

Apressei-me pelo corredor, deslizei até parar na porta, onde fiquei, as duas mãos segurando o batente. Will estava no meio do quarto, aprumado em sua cadeira de rodas, com uma bengala equilibrada sobre os braços da cadeira, de modo que o bastão se projetava uns vinte centímetros à esquerda: uma lança de justa. Não havia mais um único porta-retratos nas compridas prateleiras, as molduras caras jaziam despedaçadas por todo o chão, o tapete cravejado de reluzentes cacos de vidro. Seu colo estava pulverizado com pedaços de vidro e molduras de madeira quebradas. Absorvi aquela cena de destruição, sentindo meu coração vagarosamente reduzir devagar o ritmo à medida que eu compreendia que ele não estava ferido. Will respirava pesadamente, como se aquilo que acabara de fazer tivesse sido um grande esforço para ele. 

A cadeira voltou-se em minha direção, triturando de leve os vidros no chão. Seus olhos encontraram os meus. Eles estavam infinitamente cansados. E me desafiavam a oferecer compaixão. 

Olhei para baixo, em direção ao colo de Will, depois para o chão a seu redor. Eu conseguia apenas distinguir a foto dele com Alicia, cujo rosto agora estava oculto por uma moldura de prata dobrada, em meio a outras vítimas. 

Engoli em seco examinando a cena, e, aos poucos, levantei os olhos para os dele. Foram os segundos mais longos que já tive. 

— O pneu dessa coisa fura? — perguntei, por fim, apontando com a cabeça para a cadeira de rodas. — Porque não tenho a menor ideia de onde posso colocar um macaco para levantá-la

. Ele arregalou os olhos. Por um instante, pensei que eu realmente tivesse estragado tudo. Mas um mínimo lampejo de sorriso passou pelo rosto dele.

 — Olha, não se mexa. Vou buscar o aspirador — falei. 

Escutei a bengala cair no chão. Quando saí da sala, acho que ouvi um pedido de desculpas.

 * * *

 O Kings Head àcava sempre cheio nas tardes de quinta e naquele canto da pequena sala ele estava mais agitado ainda. Sentei-me espremida entre Patrick e um homem — cujo nome acho que era Rutter, e que olhava de vez em quando para a decoração composta por arreios e selas de cavalo pendurados nas vigas de carvalho acima da minha cabeça e para as fotos do castelo que as pontuavam — e tentei aparentar estar vagamente interessada na conversa ao redor, que parecia versar principalmente sobre taxas de gordura corporal e quantidade de carboidratos. 

Sempre achei que as reuniões quinzenais dos Tratores do Triatlo de Hailsbury deviam ser o pesadelo de um dono de pub. Só eu estava consumindo bebida alcoólica e meu solitário pacote de salgadinhos estava amassado e vazio na mesa. Todos bebericavam água mineral ou conferiam a quantidade de adoçante de suas Diet Cokes. Quando finalmente pediam comida, não se permitiam o luxo de um molho de salada que não fosse light sobre a folha de alface, ou um pedaço de frango que ainda ostentasse a pele. Eu costumava pedir batata frita só para poder ver todos fingindo que não queriam uma. 

— Phil perdeu o fôlego aos sessenta quilômetros. Disse que realmente ouviu vozes. Os pés pesavam como chumbo. Ficou com aquela cara de fantasma, sabe? 

— Comprei aqueles tênis japoneses com balanceamento sob medida. Com eles, reduzi em quinze minutos meu tempo nas 10 milhas. 

— Não viaje com uma capa de bicicleta flexível. A bicicleta de Nigel chegou ao campo de Triatlo parecendo um cabide enferrujado. 

Eu não podia dizer que gostava dos encontros dos Tratores do Triatlo mas, com minhas horas a mais de trabalho e os horários dos treinos de Patrick, aquela era uma das raras oportunidades em que conseguíamos nos ver. Ele sentou-se ao meu lado, vestindo short sobre as coxas musculosas apesar do frio intenso lá fora. Era uma questão de honra que os sócios do clube usassem o mínimo possível de roupa. Os homens eram magros e sarados, ostentavam camadas sobrepostas de roupas esportivas obscuras e caras, que garantiam propriedades extras de “palitice” ou de peso corporal mais leve que o ar. Eles tinham nomes como Scud e Trig e alongavam uns aos outros, mostrando machucados ou alegando crescimento muscular. As garotas não usavam maquiagem e tinham a bendita aparência de quem não pensa em mais nada que não seja praticar jogging por quilômetros em condições glaciais. Olhavam para mim com uma leve repugnância (ou talvez até mesmo com incompreensão), certamente tentando calcular minha massa gorda e minha massa magra e considerando que a proporção estava abaixo das expectativas.

 — Foi horrível — comecei a contar para Patrick, me perguntando se poderia pedir cheesecake sem que todos me lançassem um Olhar Mortal. — A namorada com o melhor amigo dele. 

— Você não pode culpá-la — disse ele. — Ou vai me dizer que ia continuar comigo se eu ficasse paralisado do pescoço para baixo? 

— Claro que ia.

 — Não, não ia. E nem eu esperaria isso de você. 

— Pois eu ia. 

— Mas eu não ia querer. Não ia querer que uma pessoa ficasse comigo por pena. 

— Mas quem disse que seria por pena? Por dentro, você seria a mesma pessoa.

 — Não, não seria. Não seria a mesma pessoa de maneira alguma. — Ele franziu o nariz. — Eu não ia querer viver. Depender dos outros para qualquer coisa. Ter estranhos limpando o meu traseiro… 

Um homem de cabeça raspada se enfiou entre nós dois. 

— Pat, você experimentou aquela nova bebida em gel? — perguntou. — Na semana passada, uma delas explodiu na minha mochila. Nunca vi nada igual. 

— Não sei se experimentei, Trig. Para mim basta uma banana e um Lucozade todos os dias. 

— Dazzer tomou uma Diet Coke quando participou do Norseman Xtreme. Passou mal a novecentos metros de altura. Meu Deus, como nós rimos.

 Abri um leve sorriso. 

O homem de cabeça raspada sumiu e Patrick voltou a falar comigo, aparentemente ainda ponderando sobre o destino de Will.

 — Meu Deus. Pense em tudo que não poderia mais fazer… — Balançou a cabeça. — Nada mais de corrida, nada mais de andar de bicicleta. — Olhou para mim como se tivesse acabado de lhe ocorrer. — Nada de sexo.

 — Claro que dá para fazer sexo. Só que a mulher tem de ficar por cima. 

— Ficaríamos fodidos, então. 

— Engraçadinho.

 — Além do mais, se você fica paralítico do pescoço para baixo, imagino que… hum… o equipamento não deve funcionar direito.

 Pensei em Alicia. Eu tentei, ela disse. Tentei mesmo. Durante meses.

 — Tenho certeza de que funciona com algumas pessoas. De todo modo, deve ter um jeito para isso, se você… usar a imaginação. 

— Ah. — Patrick deu um golinho na água. — Você precisa perguntar para ele amanhã. Olha, você disse que ele é horrível. Talvez ele já fosse assim antes do acidente. Talvez esse seja o verdadeiro motivo para ela ter terminado o relacionamento. Já pensou nisso? 

— Não sei… — Pensei na foto. — Eles pareciam tão felizes juntos. Mas o que prova uma foto? Eu tinha uma num porta-retratos em casa, na qual eu estava sorrindo para Patrick de maneira radiante, como se ele tivesse acabado de me salvar de um prédio em chamas, quando na verdade eu tinha acabado de dizer que ele era um “completo idiota” e ele tinha reagido com um enérgico “ah, não enche!”. 

Patrick perdeu o interesse pelo tema. 

— Ei, Jim… Jim, já viu a nova bicicleta superleve? É boa?

 Deixei que ele mudasse de assunto, e fiquei pensando no que Alicia tinha dito. Eu podia imaginar muito bem Will afastando-a. Mas, certamente, se você ama alguém, é sua função ficar com ele? Para ajudar na depressão? Na doença e na saúde e tal?

 — Mais uma bebida? 

— Uma vodca com tônica. Tônica light — acrescentei, quando ele franziu o cenho. 

Patrick deu de ombros e foi em direção ao bar. 

Comecei a me sentir meio culpada pela maneira como estávamos falando do meu patrão. Ainda mais quando percebi que ele provavelmente suportava aquela situação o tempo todo. Era quase impossível não especular sobre os aspectos mais íntimos de sua vida. Eu me desliguei do assunto. Havia uma conversa sobre um fim de semana de treino na Espanha. Eu ouvia meio distraída, até que Patrick reapareceu do meu lado e me cutucou. 

— Já pensou? 

— No quê?

 — Fim de semana na Espanha. Em vez das férias na Grécia. Você pode ficar de pernas para o ar na piscina se não gostar do passeio de sessenta quilômetros de bicicleta. Podemos conseguir voos baratos. Seis semanas. Agora que você está nadando em dinheiro… 

Pensei na Sra. Traynor. 

— Não sei… não sei se eles vão gostar que eu tire férias tão cedo.

 — Você se incomoda se eu for, então? Adoro a ideia de treinar na altitude. Pretendo participar do maior. 

— Do maior o quê? 

— Triatlo. O Norseman Xtreme. Cem quilômetros de bicicleta, cinquenta a pé, depois um maravilhoso e longo nado nos mares nórdicos com temperaturas abaixo de zero. 

O Norseman era citado com respeito: os que tinham participado exibiam seus machucados como se fossem veteranos de uma guerra distante e especialmente brutal. Patrick estava quase estalando os lábios com a expectativa. Olhei para meu namorado e me perguntei se ele era um alienígena. Pensei por um instante que eu gostava mais dele na época em que trabalhava em televendas e não conseguia passar por um posto de gasolina sem fazer um estoque de barras de chocolates Mars. 

— Você vai participar? 

— Por que não? Nunca estive tão em forma. 

Pensei em todos aqueles treinos extra, as infindáveis conversas sobre peso e distância, preparo físico e resistência. Era difícil conseguir a atenção de Patrick durante a maior parte do tempo naqueles dias.

 — Você podia ir comigo — disse ele, embora nós dois soubéssemos que ele não acreditava no que dizia.

 — É melhor você ir sozinho — respondi. — Claro. Vá em frente — insisti. E pedi o cheesecake. 

* * * 

Se eu achava que os acontecimentos do dia anterior poderiam quebrar o gelo na Granta House, estava enganada.

 Cumprimentei Will com um largo sorriso e um animado “oi”, e ele nem sequer se incomodou em tirar os olhos da janela. 

— Não está num bom dia — murmurou Nathan, vestindo o casaco para sair.

Era uma manhã de tempo muito ruim, com nuvens baixas e uma chuva batendo sem piedade nas janelas, e estava difícil de imaginar que o sol voltaria a brilhar em algum momento. Até mesmo eu ficava carrancuda num dia como aquele. Portanto, não era surpresa que Will estivesse pior. Comecei a me ocupar das tarefas matinais, repetindo para mim mesma o tempo todo que nada daquilo importava. Você não precisa gostar do seu patrão, não é? Um monte de gente não gosta. Pensei no chefe de Treena, um sujeito de cara fechada, divorciado várias vezes, que controlava a quantidade de vezes que ela ia ao banheiro e era conhecido por perguntar de maneira áspera se Trena não achava que tinha excesso de atividade renal. Além do mais, eu já completara duas semanas de trabalho. O que significava que me faltavam apenas cinco meses e treze dias para sair. 

As fotos estavam cuidadosamente empilhadas na prateleira de baixo da estante, onde eu as havia colocado no dia anterior, e então, agachada, comecei a retirá-las dos porta-retratos, separando-as, determinando quais molduras eu seria capaz de consertar. Sou muito boa em consertar coisas. Além disso, pensava que poderia ser uma forma bastante produtiva de passar o tempo. 

Estava fazendo isso havia uns dez minutos quando o zumbido discreto da cadeira de rodas motorizada me alertou da chegada de Will.

 Ele ficou à porta, olhando para mim. Havia manchas escuras sob seus olhos. Nathan me dissera que, às vezes, Will não conseguia dormir. Eu não quis pensar em como deveria ser isso, ficar preso numa cama, tendo por companhia só pensamentos ruins pela madrugada a fora. 

— Acho que posso ver se consigo consertar algumas dessas molduras — falei, segurando uma. Era a foto dele fazendo bungee jump. Tentei parecer animada . Ele precisa de alguém feliz, alguém para cima. 

— Por quê?

 Pestanejei. 

— Bom… acho que algumas dessas podem ser salvas. Trouxe um pouco de cola de madeira, se estiver tudo bem para você que eu mexa nelas. Se quiser substituí-las, posso ir ao centro da cidade no horário do almoço e ver se encontro outros porta-retratos. Ou podíamos ir os dois, se você quiser dar uma volta…

 — Quem mandou você começar a consertar?

 Ele me encarava firmemente.

 Oh-oh, pensei.

 — Eu… eu só estava querendo ajudar. 

— Você queria consertar o que eu fiz ontem.

 — Eu… 

— Sabe de uma coisa, Louisa? Seria ótimo se alguém, por uma vez, prestasse atenção ao que eu quero. Destruir essas fotos não foi um acidente. Não foi uma tentativa de decoração radical de interiores. Eu fiz isso porque realmente não quero vê-las. 

Levantei-me. 

— Desculpe. Não pensei que… 

— Você achou que sabia. Todo mundo acha que sabe do que eu preciso. Vamos colocar as malditas fotos juntas de novo. Vamos dar ao pobre aleijado alguma coisa para olhar. Não quero ter as porcarias dessas fotos me encarando toda vez que estiver na cama até alguém chegar e me tirar de lá. Certo? Você acha que é capaz de entender isso?

 Engoli em seco.

 — Eu não ia consertar aquela com Alicia… não sou tão idiota assim… só pensei que daqui a pouco você poderia…

— Oh, Céus… — Ele virou as costas se afastando, a voz sarcástica. — Por favor, me poupe de psicoterapia. Continue lendo suas revistas de fofoca ou seja lá o que você faça quando não está preparando chá. 

Minhas bochechas ficaram em chamas. Observei-o manobrar a cadeira no corredor estreito e minha voz saiu antes mesmo de eu saber o que estava fazendo. 

— Você não precisa se comportar como um babaca. 

As palavras pairaram no ar. 

A cadeira de rodas parou. Houve uma longa pausa, e então ele deu marcha a ré e fez a volta devagar, até poder me encarar, sua mão no pequeno joystick. 

— O quê? 

Olhei para ele, o coração batendo acelerado. 

— Seus amigos receberam um tratamento de merda. Ótimo. Eles provavelmente mereciam. Mas eu estou aqui todos os dias apenas tentando fazer meu trabalho melhor que posso. Por isso, eu ficaria muito satisfeita se você não fizesse da minha vida algo tão desagradável, ao contrário do que você faz com a vida de todo mundo. 

Will arregalou um pouco os olhos. Passou-se um instante até ele falar de novo. 

— E se eu disser que não quero mais você aqui?

 — Não fui contratada por você. Fui contratada pela sua mãe. E, a não ser que ela não me queira mais aqui, vou continuar. Não porque eu me importe particularmente com você, ou com este trabalho idiota, ou por querer mudar a sua vida de alguma maneira, mas porque preciso do dinheiro. Certo? Eu realmente preciso desse dinheiro. 

Aparentemente, a expressão de Will Traynor não se alterou muito, mas acho que vi espanto ali, como se não estivesse acostumado a ter alguém discordando dele.

 Ai, droga, pensei, como se a verdade do que eu tinha acabado de fazer começasse a emergir. Eu realmente estraguei tudo dessa vez. 

Mas Will apenas ficou me olhando por um tempo e, como eu não desviei o olhar, deu um pequeno suspiro, como se quisesse dizer algo desagradável. 

— Muito bem — disse ele, e virou-se na cadeira de rodas. — Apenas coloque as fotos na gaveta de baixo, sim? Todas.

 E, com um zunido baixo, foi embora.


Capítulo 5 

Ser atirada para dentro de uma vida totalmente diferente — ou, pelo menos, jogada com tanta força na vida de outra pessoa a ponto de parecer bater com a cara na janela dela — obriga a repensar sua ideia a respeito de quem você é. Ou sobre como os outros o veem. 

Para meus pais, em quatro curtas semanas eu fiquei um pouco mais interessante. Passei a ser o canal para um mundo diferente. Minha mãe, particularmente, todo dia me fazia perguntas sobre a Granta House e os hábitos domésticos de seus moradores, como se fosse uma zoóloga forense observando alguma estranha criatura nova e seu habitat. 

— A Sra. Traynor usa guardanapos de linho em todas as refeições? — ela poderia perguntar, ou: — Eles passam aspirador na casa todos os dias, como nós? — Ou ainda: — Como eles preparam as batatas? 

Mamãe se despedia de mim de manhã com recomendações estritas para que eu descobrisse que marca de papel higiênico eles usavam, ou se os lençóis eram de algodão misto. Isso era fonte de grande decepção, já que na maioria das vezes eu não conseguia me lembrar de investigar nada. Minha mãe estava secretamente convencida de que os bacanas viviam como porcos — isso desde que eu contei, aos seis anos, sobre uma colega bem-nascida cuja mãe não nos deixava brincar na sala “porque íamos levantar a poeira”. 

Quando eu chegava em casa e contava que, sim, o cachorro definitivamente podia comer na cozinha ou que, não, os Traynor não varriam a escada da frente todos os dias como minha mãe fazia, ela contraía os lábios, olhava de soslaio para meu pai e acenava com a cabeça em muda satisfação, como se tivesse acabado de confirmar tudo de que suspeitava sobre os modos desleixados da classe alta.

 O fato de minha família depender do meu salário, ou de saber que eu não gostava mesmo do meu trabalho, significou receber um pouco mais de respeito em casa. Isso, na verdade, não mudava muito as coisas: no caso de meu pai, ele parou de me chamar de “gordota” e, quanto a mamãe, passei a ter uma caneca de chá à minha espera quando chegava em casa.

 Para Patrick e minha irmã, eu era a mesma: ainda alvo de piadas, e a recebedora de abraços, beijos e maus humores. Eu não me sentia diferente. Parecia a mesma pessoa, ainda vestida, segundo Treen, como se tivesse enfrentado uma luta greco-romana num brechó de caridade.

 Eu não fazia ideia do que os moradores da Granta House achavam de mim. Will era indecifrável. Para Nathan, eu devia ser apenas mais uma em uma longa lista de cuidadoras contratadas. Ele era bastante simpático, mas um pouco distante. Suspeitava de que ele não estava convencido de que eu fosse durar muito. O Sr. Traynor me cumprimentava, afável, quando nos cruzávamos no hall, ocasionalmente me perguntava como estava o trânsito ou se tudo ia bem. Mas não sei se me reconheceria se nos víssemos em um outro cenário. 

Mas para a Sra. Traynor — ó, céus! —, para ela eu era aparentemente a pessoa mais idiota e mais irresponsável do mundo. 

Tudo começou com os porta-retratos. Nada naquela casa escapava à observação da Sra. Traynor, e eu deveria saber que a destruição dos porta-retratos seria considerada um evento sísmico. Ela me interrogou para saber por quanto tempo exatamente eu tinha deixado Will sozinho; o que havia motivado aquilo; quão rápido eu havia arrumado tudo. Não chegou a me criticar — era muito discreta até mesmo para aumentar a voz —, mas o jeito de piscar os olhos devagar a cada resposta que eu dava, os breves hum-hums conforme eu falava, disseram tudo o que eu precisava saber. Não fiquei surpresa quando Nathan me contou que ela era magistrada.

 Ela achava que seria uma boa ideia se eu não deixasse Will sozinho da próxima vez, não importando quão desagradável fosse a situação, hum? E que, na próxima vez que eu tirasse o pó dos móveis, eu poderia me certificar de que os objetos não estivessem tão na beirada de modo a evitar que caíssem acidentalmente no chão, hum? (Ela parecia preferir crer que aquilo fora um acidente). A Sra. Traynor fazia com que eu me sentisse uma idiota de primeira categoria e, consequentemente, foi isso que me tornei quando estava perto dela. Ela sempre chegava quando eu tinha acabado de deixar alguma coisa cair no chão, ou estava lutando com os botões do fogão, ou então ela estava de pé na entrada, aparentando um pouco de irritação quando eu pisava de volta na casa depois de buscar lenha lá fora, como se eu tivesse ido muito mais longe do que de fato eu tinha ido. 

Estranhamente, o comportamento da Sra. Traynor me atingia mais do que a agressividade de Will. Em algumas ocasiões, tive vontade de perguntar abertamente se havia algo errado. Você disse que estava me contratando mais pela minha postura do que por minhas habilidades profissionais, eu quis dizer. Bem, aqui estou eu, sendo animada a cada dia duro. Sendo forte, como você queria. Então, qual é o seu problema? 

Mas Camilla Traynor não era o tipo de mulher para quem se podia dizer isso. Além do mais, eu achava que ninguém naquela casa falava qualquer coisa diretamente para outra pessoa. 

— Lily, a nossa última garota, tinha o inteligente hábito de usar uma mesma panela para cozinhar dois legumes de uma vez.— O que significava: Você está fazendo muita bagunça. 

“Talvez você queira uma xícara de chá, Will” significava Não faço a menor ideia do que falar para você, Will. 

“Acho que tenho alguns papéis para organizar” significava Você está sendo grosseiro, vou sair do quarto. 

Tudo isso dito com aquela expressão levemente sofrida e os dedos delgados movendo de um lado para o outro o crucifixo na corrente. Ela era contida demais, reprimida demais. Fazia minha mãe se parecer com a Amy Winehouse. Eu sorria educadamente, fingindo que não havia reparado, e fazia o que era paga para fazer. 

Ou, pelo menos, tentava. 

— Por que, raios, você está tentando esconder cenouras no meu garfo?

Dei uma olhada para o prato. Eu estava assistindo a apresentadora na TV e pensando como meu cabelo ficaria tingido na cor do dela. 

— Hein? Não tentei. 

— Tentou. Você amassou as cenouras e tentou escondê-las no molho da carne. Eu vi.

 Enrubesci. Ele tinha razão. Eu estava dando comida a Will enquanto assistíamos, meio distraídos, ao noticiário da hora do almoço. A refeição era rosbife com purê de batatas. A mãe de Will tinha dito para colocar três tipos de legumes no prato, embora ele tivesse deixado bem claro que não queria legumes naquele dia. Acho que não existia uma única refeição que eu fosse instruída a preparar que não fosse milimetricamente balanceada em termos nutricionais. 

— Por que você está querendo me contrabandear cenouras? 

— Não quero. 

— Quer dizer que não tem cenoura aí? 

Olhei para os pedacinhos cor de laranja. 

— Bom… está certo… 

Ele estava esperando, sobrancelhas erguidas. 

— Hum… acho que pensei que legumes poderiam fazer bem a você. 

Fiz isso em parte em obediência à Sra. Traynor e em parte por hábito. Eu costumava dar comida para Thomas, cujos legumes precisavam ser amassados e escondidos em montes de batata, ou ocultados em bocados de macarrão. Cada pedacinho que passava por ele era como uma pequena vitória.

 — Deixe-me ver se entendi. Você acha que uma colher de chá de cenoura vai melhorar minha qualidade de vida?

 De fato, era muito idiota quando ele colocava a coisa daquele jeito. Mas eu tinha aprendido que era importante não parecer intimidada por nada que Will dissesse ou fizesse. 

— Entendi seu ponto — falei, calma —, não farei de novo. 

E então, do nada, Will Traynor riu. Explodiu de dentro dele num arquejar, como se tivesse sido totalmente inesperado. 

— Pelo amor de Deus. — Ele balançou a cabeça.

 Encarei-o.

 — O que mais você tem escondido na minha comida? Daqui a pouco vai dizer para eu abrir o túnel e o Sr. Trem vai levar um pouco de brotos de couve-de-bruxelas até a próxima estação. 

Pensei naquilo por um minuto. 

— Não — disse eu, séria —, eu só lido com o Sr. Garfo, e ele não se parece com um trem. 

Alguns meses antes, Thomas tinha me dito isso, bem firme. 

— Minha mãe mandou você fazer isso? 

— Não. Olhe, Will, desculpe. Eu… não estava raciocinando.

 — Como se isso alguma vez acontecesse.

 — Tudo bem, tudo bem. Vou tirar as benditas cenouras, se incomodam tanto a você. 

— Não são as benditas cenouras que me incomodam, mas sim tê-las escondidas em minha comida por uma mulher maluca que chama os talheres de Sr. e Sra. Garfo. 

— Era uma brincadeira. Olhe, deixe eu tirar as cenouras e… 

Ele virou a cara.

 — Não quero mais nada. Só faça uma xícara de chá para mim. — Saí da sala e ele berrou: — E não tente colocar uma porcaria de uma abobrinha no chá. 

Nathan entrou quando eu estava terminando com os pratos. 

— Ele está de bom humor — disse, quando lhe entreguei uma caneca de chá. 

— Está? — Eu estava comendo meus sanduíches na cozinha. Estava muito frio lá fora e de algum modo a casa não parecia tão hostil nos últimos tempos. 

— Ele disse que você está querendo envenená-lo. Mas disse… você sabe… de um jeito legal.

 Fiquei estranhamente satisfeita com a notícia. 

— É… bom… — disse eu, tentando esconder o que eu sentia — preciso de tempo.

 — Ele também tem falado um pouco mais. Havia semanas em que mal dizia uma palavra, mas nos últimos dias ele anda definitivamente mais a fim de conversar.

 Pensei em Will dizendo que, se eu não parasse com aquela porcaria de assovio, ele teria de me despedir. 

— Acho que a noção de conversa dele é pouco diferente da minha.

 — Bom, nós conversamos um pouco sobre críquete. E vou lhe dizer…. — Nathan baixou a voz — Há mais ou menos uma semana, a Sra. T. perguntou se eu achava que você estava indo bem. Eu disse que achava você muito profissional, mas eu sabia que não era isso que ela queria saber. Então, ontem ela me disse que tinha ouvido vocês dois rindo. 

Lembrei da tarde anterior. 

— Ele estava rindo de mim — expliquei.

 Will tinha achado muito engraçado que eu não soubesse o que era pesto. Eu disse que o jantar seria “macarrão com molho verde”. 

— Ah, ela não se importa com isso. É que há muito tempo ele não ri de alguma coisa.

 Era verdade. Parecia que Will e eu tínhamos encontrado um jeito mais simples de conviver. O que girava em torno, principalmente, de ele ser rude comigo e de eu, de vez em quando, devolver a grosseria. Will dizia que eu tinha feito algo errado e eu perguntava se aquilo era da conta dele, então ele falava de maneira educada. Ele me xingava, ou dizia que eu era um pé no saco, e eu respondia que ele poderia tentar ficar sem aquele pé no saco específico. Era meio exagerado, mas parecia funcionar para ambos os lados. Às vezes, parecia até um alívio para ele que houvesse alguém preparado para tratá-lo mal, contradizê-lo ou alertá-lo para o fato de que estava sendo desagradável. Eu tinha a sensação de que, desde o acidente, todo mundo andava na ponta dos pés ao redor dele, exceto talvez Nathan, a quem Will parecia tratar com um respeito maquinal e que provavelmente não se incomodaria de todo modo com nenhum dos comentários afiados de Will. Nathan era um veículo blindado em forma de homem. 

— Você deve procurar continuar sendo o alvo das piadas dele, certo? 

Coloquei minha caneca na pia. 

— Acho que isso não será um problema. 

A outra grande mudança, além das condições atmosféricas no interior da casa, era que Will não pedia para ficar sozinho tanto quanto antes, e em algumas tardes até me perguntava se eu queria ficar e assistir a um filme com ele. Não me incomodei muito quando foi a vez de O exterminador do futuro — embora eu já tivesse assistido a todos os filmes da série —, mas quando ele me mostrou o filme francês legendado, dei uma rápida olhada na capa e disse que achava que eu preferia deixar passar aquele. 

— Por quê?

 Dei de ombros.

 — Não gosto de filme legendado. 

— É o mesmo que não gostar de filmes com atores. Não seja ridícula. Do que você não gosta? De precisar ler ao mesmo tempo que vê alguma coisa? 

— Eu só não gosto mesmo de filme estrangeiro. 

— Qualquer filme que não se enquadre no festival de cinema local é estrangeiro. Você acha que Hollywood é um subúrbio de Birmingham? 

— Muito engraçado. 

Ele não acreditou quando eu admiti que nunca tinha visto um filme legendado. Mas meus pais costumavam monopolizar o controle remoto à noite e era tão plausível que Patrick assistisse a um filme estrangeiro quanto seria sugerir que nós nos matricularíamos em aulas noturnas de crochê. O multiplex na cidade mais próxima da nossa só passava os últimos filmes de tiroteio ou comédias românticas e ficava tão lotado de crianças encapuzadas perturbando durante a sessão que a maioria das pessoas que moravam perto da cidade nem se dava o trabalho de ir ao cinema. 

— Você precisa assistir a esse filme, Louisa. Na verdade, isso é uma ordem. — Will moveu sua cadeira de rodas para trás e fez sinal com a cabeça em direção à poltrona. — Ali. Sente-se ali. Não se mexa até que termine. Nunca assistiu a um filme estrangeiro! Pelo amor de Deus — resmungou ele. 

Era um filme antigo sobre um corcunda que herda uma casa no interior da França e Will disse que era baseado num livro famoso, mas posso dizer que eu nunca ouvi falar nele. Passei os primeiros vinte minutos me sentindo meio irrequieta, irritada com as legendas e pensando se Will ia ficar ofendido se eu dissesse que precisava ir ao banheiro.

 E então, aconteceu uma coisa. Parei de pensar em como era difícil ouvir e ler ao mesmo tempo, esqueci os horários dos remédios de Will e mesmo se a Sra. Traynor poderia pensar que eu estava sendo indolente, e comecei a ficar nervosa pelo pobre homem e sua família, que estavam sendo enganados por vizinhos inescrupulosos. Quando o Corcunda morreu, eu soluçava baixinho, limpando a coriza que se espalhava com a manga da minha blusa. 

— Então — disse Will, surgindo ao meu lado. Deu uma olhadela furtiva na minha direção —, você não gostou mesmo. 

Olhei para ele e descobri, para minha surpresa, que lá fora estava escuro. 

— Você agora vai tripudiar, não é? — resmunguei, pegando a caixa de lenços de papel. 

— Um pouco. Estou pasmo que você tenha alcançado a madura idade de… quanto mesmo? 

— Vinte e seis.

 — Vinte e seis anos sem nunca ter visto um filme legendado. — Ele me observou enxugar os olhos. 

Vi o lenço de papel e percebi que não tinha restado rímel em meus olhos. 

— Não pensei que fosse obrigatório — rosnei.

 — Certo. Então o que você faz, Louisa Clark, se não assiste a filmes? 

Amassei o papel. 

— Você quer saber o que eu faço quando não estou aqui? 

— Foi você que quis que nos conhecêssemos. Então, vamos lá, fale sobre você. 

Ele tinha aquele jeito de falar que não nos deixava saber se estava zombando ou não. Eu esperava o troco. 

— Por que, de repente, ficou interessado?

 — Ah, pelo amor de Deus. Sua vida social não é segredo de Estado, é? — Ele começou a parecer irritado. 

— Sei lá o que faço… — respondi. — Saio para beber em um pub. Assisto um pouco de TV. Vou ver meu namorado correr. Nada demais. 

— Vai ver seu namorado correr. 

— É. 

— Mas você mesma não corre. 

— Não. Na verdade, eu não… — Olhei para o meu tórax. — …não levo jeito.

 Isso fez com que ele sorrisse. 

— E o que mais? 

— Como assim, o que mais?

 — Tem hobbies? Viaja? Lugares onde gosta de ir?

 Ele estava começando a soar como o meu velho orientador vocacional. 

Tentei pensar.

 — Não tenho hobbies. Leio um pouco. Gosto de roupas. 

— Conveniente — disse ele, seco. 

— Você perguntou. Não sou uma pessoa de hobbies. — Minha voz ficou estranhamente defensiva. — Não faço muita coisa, certo? Trabalho e vou para casa. 

— Onde você mora? — Do outro lado do castelo. Na Renfrew Road. 

Ele pareceu pasmo. Claro. Havia pouca gente transitando entre os dois lados do castelo. 

— É depois da rodovia com pista dupla. Perto do McDonald’s.

 Ele balançou a cabeça, embora eu não estivesse certa de que ele realmente conhecia o lugar de que eu estava falando.

 — Férias? 

— Fui à Espanha com Patrick. Meu namorado — acrescentei. — Quando eu era pequena, só íamos a Dorset. Ou Tenby. Minha tia mora lá

. — E o que você quer? 

— O que eu quero do quê? 

— Da vida? 

Pisquei. 

— Isso é um pouco íntimo, não?

 — O que você quer no geral. Não estou pedindo para se autoanalisar. Só estou perguntando o que você quer. Casar? Ter alguns pestinhas? Sonha com alguma profissão? Gostaria de viajar pelo mundo? 

Fez-se uma longa pausa. 

Acho que eu sabia que minha resposta o desapontaria mesmo antes de eu dizer aquelas palavras. 

— Não sei. Nunca pensei nisso. 

* * * 

Na sexta-feira, fomos ao hospital. Fiquei feliz por só ter sido avisada da consulta quando cheguei para trabalhar de manhã, pois teria ficado acordada a noite inteira preocupada se soubesse que ia de levá-lo de carro até lá. Claro que sei dirigir. Mas posso dizer que dirijo do mesmo jeito que falo francês. Sim, fiz o exame de habilitação e passei. Mas, desde então, não usei essa habilidade específica mais que uma vez por ano. A ideia de colocar Will e sua cadeira de rodas na minivan adaptada, levá-lo e trazê-lo da cidade vizinha me enchia de terror.

 Durante semanas, desejei que meu dia de trabalho envolvesse algum tipo de fuga daquela casa. Mas, naquele momento, eu teria feito qualquer coisa para ficar ali dentro. Encontrei um cartão do hospital no meio da pasta com seus documentos, que tinha grossas divisórias intituladas Transporte, Seguro, Viver com Deficiência e Compromissos. Peguei o cartão e verifiquei que a data que estava nele era a de hoje. Uma parte de mim esperava que Will estivesse errado. 

— Sua mãe vai conosco? 

— Não. Ela não acompanha as consultas. 

Não consegui esconder minha surpresa. Eu havia pensado que ela quisesse supervisionar cada aspecto do tratamento dele. 

— Ela costumava ir — disse Will. — Agora temos um acordo. 

— Nathan vai? 

Eu estava ajoelhada na frente dele. Fiquei tão nervosa que deixei cair um pouco do almoço em sua calça, e tentava inutilmente esfregar aquilo, de modo que uma boa parte de sua roupa estava ensopada. Will não disse nada, apenas mandou eu parar de me desculpar, o que não ajudou muito com meu estado geral de nervosismo.

 — Por quê? 

— Por nada. — Eu não queria que ele soubesse quão amedrontada eu estava. Passei a maior parte daquela manhã (tempo que em geral usava para limpar as coisas) lendo e relendo o manual de instruções do dispositivo para içar a cadeira no carro, mas eu ainda estava apavorada com o momento em que seria a única responsável por levantá-lo na cadeira a meio metro do chão. 

— Ora, Clark. Qual é o problema? 

— Está bem. Eu só… eu só achei que seria mais fácil se, na primeira vez, alguém que estivesse a par das coisas fosse também. 

— Ao contrário de mim — disse ele. 

— Não foi o que eu quis dizer. 

— Acha que não sei me cuidar? 

— Você opera o içador de cadeira? — perguntei, grosseiramente. — É capaz de me dizer exatamente o que eu preciso fazer? 

Ele ficou me olhando no mesmo nível. Se estivera procurando briga, parecia que tinha mudado de ideia. 

— Você venceu. Sim, Nathan vai. Ele é um par extra de mãos bastante útil. Além disso, achei que você ficaria menos nervosa se ele fosse também. 

— Não estou nervosa — protestei. 

— É evidente que não. — Ele olhou para o próprio colo, que eu ainda esfregava com um pano. Eu conseguira tirar o molho de macarrão, mas Will estava encharcado. — Então, eu vou sair na rua parecendo sofrer de incontinência urinária?

 — Não terminei. — Liguei o secador de cabelos e direcionei o bocal para o meio das pernas dele. No momento em que o ar quente atingiu suas calças, suas sobrancelhas se ergueram. 

— Sim, bem… — falei. — Também não era o que eu planejava fazer numa tarde de sexta-feira. 

— Você está mesmo tensa, não é? 

Eu podia sentir que ele me observava. 

— Ah, anime-se, Clark. Sou eu que estou recebendo ar escaldante nos genitais. 

Não respondi. Ouvi a voz dele por cima do barulho do secador. 

— Vamos lá, qual é a pior coisa que poderia me acontecer: acabar numa cadeira de rodas? 

Pode parecer idiota, mas não consegui não rir. Era o mais perto que Will chegara de realmente tentar fazer algo para me animar. 

* * *

 Do lado de fora, o carro parecia um veículo comum, mas quando se abria a porta traseira, uma rampa descia pela lateral e se nivelava com o chão. Com Nathan acompanhando, guiei a cadeira de uso externo (Will tinha uma só para viagens) precisamente até em cima da rampa, conferi o freio elétrico e programei para que Will fosse içado devagar para dentro do carro. Nathan deslizou para o banco do passageiro, colocou o cinto em Will e verificou as rodas. Tentando fazer com que minhas mãos parassem de tremer, soltei o freio de mão do carro e dirigi devagar pelo caminho até o hospital. 

Longe de casa, Will pareceu encolher um pouco. Fazia frio e Nathan e eu o enrolamos num cachecol e num casaco grosso, mas ele continuou calado, o maxilar endurecido, de certa forma oprimido pela vastidão ao seu redor. Toda vez que eu olhava no espelho retrovisor (o que acontecia com frequência — mesmo com Nathan lá, eu estava morrendo de medo de que a cadeira se soltasse da amarração), ele estava espiando para fora da janela com uma expressão insondável. Mesmo quando eu parava ou freava forte, o que ocorreu várias vezes, ele apenas estremecia um pouco e esperava que eu prosseguisse. 

Quando chegamos ao hospital, uma fina camada de suor cobria meu corpo. Percorri o estacionamento do hospital três vezes, apavorada demais para dar marcha a ré mesmo na maior das vagas, até que eu percebi que Nathan e Will estavam começando a perder a paciência. Então, finalmente, desci a rampa da cadeira de rodas e Nathan ajudou Will a sair. 

— Bom trabalho — disse Nathan, dando um tapinha nas minhas costas ao sair do carro, mas achei difícil acreditar que fora mesmo um bom trabalho.

 Há coisas que você não percebe até acompanhar uma pessoa numa cadeira de rodas. Uma delas é como a maioria dos calçamentos é malconservada, com buracos mal remendados ou desnivelada. Andando devagar ao lado de Will enquanto ele mesmo dirigia a cadeira, notei que cada laje em desnível causava nele uma dolorosa chacoalhada, ou como ele frequentemente precisava se desviar com cuidado de algum obstáculo em potencial. Nathan fingia não notar, mas eu vi que ele também observava. Will estava apenas sério e decidido. 

A outra coisa é como a maioria dos motoristas é desatenta. Param em cima da calçada ou tão perto de outro carro que é impossível para alguém em uma cadeira de rodas atravessar a rua. Fiquei pasma, algumas vezes até pensei em deixar um bilhete grosseiro espetado no limpador de para-brisa, mas Nathan e Will pareciam estar acostumados. Nathan mostrou um lugar onde dava para atravessar e enfim conseguimos, cada um de nós flanqueando Will. 

Ele não disse uma única palavra desde que saímos de casa. 

O hospital era um prédio baixo e reluzente, cuja recepção imaculada parecia com um desses hotéis modernosos, talvez para provar que se tratava de um hospital particular. Recuei enquanto Will dizia seu nome para a recepcionista, e então segui Nathan e ele por um longo corredor. Nathan carregava uma enorme mochila com tudo o que Will podia precisar durante aquela rápida visita, desde copos especiais até roupas extras. Ele havia feito a mochila na minha frente durante a manhã, detalhando cada possível eventualidade. 

— Acho bom que não precisemos fazer isso sempre — disse ele, surpreendendo minha expressão assustada. 

Não acompanhei a consulta. Nathan e eu nos recostamos nas confortáveis cadeiras do lado de fora da sala do médico. O lugar não tinha aquele cheiro de hospital e havia um jarro com flores frescas no peitoril da janela. E não eram flores comuns. Eram enormes coisas exóticas cujo nome eu desconhecia, artisticamente arrumadas em buquês minimalistas. 

— O que eles estão fazendo lá dentro? — perguntei, depois que estávamos lá havia meia hora.

 Nathan levantou os olhos do livro. 

— É apenas o check-up semestral. 

— Para ver se ele está melhorando? 

Nathan pousou o livro.

 — Não vai melhorar. Ele tem uma lesão na coluna. 

— Mas você faz fisioterapia e outras coisas com ele. 

— Para manter as condições físicas, para os músculos não atrofiarem, os ossos não desmineralizarem, evitar trombose nas pernas, essas coisas. 

Quando voltou a falar, sua voz era suave, como se achasse que podia me desapontar. 

— Ele não vai mais andar, Louisa. Isso só acontece nos filmes de Hollywood. Tudo o que fazemos é tentar evitar que sinta dor e manter os movimentos que ele tem. 

— Ele faz essas coisas com você? As coisas de fisioterapia? Parece que ele não quer fazer nada do que eu sugiro.

 Nathan franziu o nariz. 

— Sim, ele faz as coisas, mas acho que sem emoção. Quando comecei, ele estava muito determinado. Mergulhou fundo na reabilitação, mas, depois de um ano sem melhoras, acho que concluiu que era muito difícil continuar acreditando que isso funcionaria. 

— Acha que ele deve continuar? 

Nathan olhou para o chão.

 — Sinceramente? Ele é um tetraplégico com lesão em C5 e C6. Isso significa que nada funciona abaixo daqui, mais ou menos… — Nathan colocou a mão na parte superior do tórax. — Os médicos ainda não conseguiram descobrir como consertar a medula espinhal. 

Olhei para a porta, pensando na expressão de Will no percurso ensolarado de inverno, e no rosto alegre do homem esquiando naquelas férias. 

— No entanto, ainda há muitos tipos de avanços médicos, não? Quer dizer… em algum lugar como este aqui… devem estar trabalhando nessas coisas o tempo todo. 

— É um hospital muito bom — disse ele, calmamente.

— Onde há vida, há esperança, não é assim? 

Nathan olhou para mim e depois voltou-se para seu livro. 

— Sem dúvida — concordou. 

* * * 

Às quinze para as três, fui pegar um café a pedido de Nathan. Ele disse que aquelas consultas podiam demorar e que montaria guarda no forte até que eu voltasse. Circulei um pouco pela recepção, folheei umas revistas na banca de jornais, me demorando nas barras de chocolate.

 E, como era de se esperar, me perdi na volta e tive de perguntar a várias enfermeiras para onde eu deveria ir. Duas delas não tinham ideia. Quando consegui chegar, com o café esfriando em minhas mãos, o corredor estava vazio. Ao me aproximar, pude ver que a porta do consultório estava escancarada. Hesitei do lado de fora, mas agora eu escutava a voz da Sra. Traynor em minhas orelhas o tempo todo, criticando-me por não ficar com ele. Eu tinha feito de novo. 

— Então, nos veremos daqui a três meses, Sr. Traynor — dizia uma voz masculina. — Dosei os remédios antiespasmódicos e vou garantir que alguém telefone para o senhor com o resultado dos exames. Provavelmente na segunda-feira. 

Ouvi a voz de Will. 

— Posso comprar esses remédios na farmácia lá de baixo? 

— Sim. Aqui mesmo. Eles também devem ter um pouco mais desses.

Uma voz de mulher.

 — Posso pegar a pasta? 

Percebi que eles deviam estar prestes a sair. Bati na porta e alguém disse para eu entrar. Dois pares de olhos giraram em minha direção. 

— Sinto muito — disse o médico, levantando-se —, pensei que fosse o fisioterapeuta. 

— Sou a… ajudante de Will — falei, segurando na porta. Will estava inclinado na cadeira de rodas enquanto Nathan vestia a camisa nele. — Desculpe… pensei que estivesse pronto. 

— Um minuto, pode ser, Louisa? — A voz de Will cortou a sala. 

Murmurando desculpas, saí com o rosto queimando.

O que me chocou não foi ver o corpo de Will descoberto, magro e cheio de escaras. Não foi o olhar vagamente irritado do médico, do mesmo gênero que a Sra. Traynor me lançava todos os dias — um olhar que me convencia de que eu continuava a ser a abominável mulher das neves, mesmo ganhando mais por hora. 

Não, o que me chocou foram as marcas vermelhas arroxeadas nos pulsos dele, as compridas e denteadas cicatrizes que não podiam ser disfarçadas, por mais rápido que Nathan puxasse as mangas da camisa.

Capítulo 6 

A neve caiu tão de repente que saí de casa sob um céu azul-claro e menos de meia hora depois passei por um castelo que mais parecia um bolo decorado, coberto por uma grossa camada de neve branca.

Caminhei com dificuldade pela entrada da garagem, os passos abafados pela neve e os dedos já dormentes por causa do frio, tremendo no meu casaco de seda chinês, no demais. Um redemoinho de ocos brancos surgiu de um finito céu cinza-aço e quase escondeu a Granta House, encobrindo os sons e desacelerando o ritmo do mundo de forma nada natural. Atrás das cercas vivas bem-aparadas, os carros passavam com cautela redobrada, os pedestres nas calçadas escorregavam e soltavam gritinhos. Puxei o cachecol sobre o nariz e desejei estar vestindo algo mais adequado para aquele clima do que sapatilhas e um minivestido de veludo.

Para minha surpresa, não foi Nathan quem abriu a porta, mas o pai de Will.

— Ele está de cama — disse, olhando do vestíbulo. — Não está muito bem. Não sei se devo chamar o médico.

— Onde está Nathan?

— É sua manhã de folga. Claro que tinha de ser hoje. A maldita agência de enfermagem veio e foi embora em seis segundos. Se continuar nevando assim, não sei o que faremos mais tarde. — Ele deu de ombros, como se essas coisas não tivessem jeito mesmo, e sumiu pelo corredor, parecendo aliviado por não ser mais o responsável. — Você sabe do que ele precisa, não? — falou, por cima do ombro.

Tirei meu casaco e as sapatilhas, pois sabia que a Sra. Traynor estava no tribunal (ela anotava as datas em um calendário na cozinha do anexo). Coloquei as meias molhadas em cima de um aquecedor para secar. Um par de meias de Will estava no cesto de roupas lavadas, então calcei-o. As meias dele pareciam ridiculamente grandes em mim, mas era uma maravilha sentir os pés aquecidos e secos. Will não respondeu quando o chamei, então z um suco, bati baixinho na porta do quarto e enfiei a cabeça. Na meia-luz, só pude distinguir uma forma embaixo do edredom. Estava dormindo.

Dei um passo para trás, fechei a porta e iniciei as tarefas matinais.

Minha mãe parecia ter um prazer quase físico em arrumar a casa. Já fazia um mês que eu aspirava e limpava diariamente o anexo da Granta House e continuava sem saber qual era a graça. Eu desconfiava que em nenhum momento da minha vida deixaria de desejar que outra pessoa fizesse aquilo no meu lugar.

Mas num dia como aquele, com Will confinado na cama e o mundo parecendo estagnado lá fora, percebi que havia uma espécie de prazer meditativo em ir de um lado ao outro do anexo. Enquanto tirava o pó e lustrava os móveis, levei o rádio comigo por todos os cômodos, em volume baixo para não incomodar Will. De vez em quando, enava a cabeça na porta para conferir se estava respirando e só à uma da tarde comecei a ficar preocupada.

Enchi o cesto de lenha e reparei que vários centímetros de neve haviam se acumulado no chão. Fiz outro suco fresco para Will e bati na porta do quarto. Bati de novo, dessa vez mais alto.

— Sim? — Sua voz estava rouca, como se eu o tivesse acordado.

 — Sou eu. — Como ele não respondeu, acrescentei: — Louisa. Posso entrar?

— Pode, não estou fazendo a dança dos sete véus.

O quarto estava escuro, tinha as cortinas fechadas. Entrei e esperei meus olhos se adaptarem à escuridão. Will estava deitado de lado, com um braço dobrado à frente como se tentasse se levantar, na mesma posição de quando olhei antes. Às vezes, era fácil esquecer que ele não conseguia se virar sozinho. O cabelo estava grudado de um lado da cabeça e ele estava bem enrolado no edredom. O cheiro morno de homem sem banho enchia o quarto; não era desagradável, mas era algo um pouco assustador para fazer parte de um dia de trabalho.

— O que posso fazer por você? Quer um suco?

— Preciso mudar de posição.

 Coloquei o suco sobre a cômoda e me aproximei da cama.

— O que… o que quer que eu faça?

Ele engoliu com cuidado, como se sentisse dor.

— Quero que me levante e me vire, depois erga o encosto da cama. Aqui… — Fez sinal para eu me aproximar. — Ponha os braços embaixo de mim, entrelace as mãos nas minhas costas e me levante. Fique encostada na cama para não distender sua coluna.

Não dava para fingir que aquilo não era um pouco estranho. Coloquei os braços em volta dele, seu cheiro preenchendo minhas narinas, sua pele quente encostando na minha. Só podia ficar mais perto se mordiscasse a orelha dele. Essa ideia me deixou histérica e precisei me esforçar para me conter.

— O que foi?

— Nada. — Respirei fundo, entrelacei as mãos e ajustei-me até sentir que ele estava firme. Ele era mais largo do que eu pensava e mais pesado também. Então, contei até
três e o levantei.

— Meu Deus — exclamou ele, próximo ao meu ombro.

— O que foi? — Quase o deixei cair.

— Suas mãos estão geladas.

 — É. Bom, se for sair da cama, saiba que lá fora está nevando.

 Eu estava brincando, mas então notei que seu corpo estava quente sob a camiseta, o calor parecia vir de dentro. Ele resmungou um pouco quando o ajeitei no travesseiro e tentei me mexer o mais lenta e delicadamente possível. Ele apontou para o controle remoto que levantava a cama à altura da cabeça e dos ombros dele.

— Não levante muito — murmurou. — Estou um pouco tonto.

 Acendi a luz da cabeceira, ignorando sua vaga reclamação, para poder ver seu rosto.

 — Will… você está bem?

— Precisei repetir a pergunta para ele responder.

— Já estive melhor.

— Precisa de analgésicos?

— Sim… bem fortes.

— Talvez paracetamol?

Ele suspirou no travesseiro frio.

Entreguei o copo de água para ele e esperei que engolisse.

— Obrigado — disse ele e, de repente, fiquei sem jeito.

Will jamais agradecia nada.

Ele fechou os olhos e durante um tempo fiquei na porta, observando seu peito subir e descer sob a camiseta, a boca entreaberta. Sua respiração estava curta e talvez um pouco mais difícil do que nos outros dias. Mas até então eu nunca o tinha visto fora da cadeira de rodas e não sabia se isso era devido à pressão de estar deitado.

— Pode ir — resmungou ele.

Saí.

* * *

Li minha revista e só levantei a cabeça para ver a neve se acumular, densa, em volta da casa, subindo pelo peitoril das janelas, formando uma paisagem granulada. Mamãe me mandou uma mensagem de texto ao meio-dia e meia, dizendo que papai não conseguiu sair de carro. “Não venha para casa sem antes ligar para nós”, recomendou. Eu não sabia ao certo o que ela ia fazer: mandar papai me buscar com um trenó e um cachorro São Bernardo?

 Ouvi o noticiário pela rádio: os engarrafamentos nas estradas, os trens parados, as aulas suspensas devido à nevasca inesperada. Voltei ao quarto de Will e dei uma olhada nele outra vez. Não gostei de sua cor. Estava pálido, com pontos vermelhos nas
bochechas.

— Will? — chamei, baixinho.

Ele não se mexeu.

 — Will?

Senti leves pontadas de pânico. Chamei seu nome mais duas vezes, bem alto. Não tive resposta. Finalmente, debrucei-me sobre ele. Não havia nenhum movimento em seu rosto, nem em seu peito. Sua respiração. Eu devia sentir sua respiração. Encostei o rosto no dele, tentando detectar o ar saindo de suas narinas. Como não consegui, estendi a mão e toquei seu rosto de leve.

 Ele se mexeu e abriu os olhos, que estavam a centímetros dos meus.

— Desculpe — falei, pulando para trás.

 Ele piscou, olhou ao redor do quarto como se tivesse estado em algum lugar distante.

— Sou eu, Lou — expliquei, sem saber se ele havia me reconhecido.

 Sua expressão era meio exasperada.

— Eu sei.

 — Quer uma sopa?

— Não, obrigado. — Fechou os olhos.

— Mais analgésicos?

Havia um brilho de transpiração em seu rosto. Toquei o edredom, que estava um pouco quente e suado. Isso me deixou nervosa.

— Tem alguma coisa que eu deva fazer? Quer dizer, se Nathan não conseguir chegar aqui?

— Não… estou ótimo — ele murmurou e fechou os olhos de novo.

 Conferi na agenda se eu tinha esquecido alguma coisa. Abri o armário de remédios, encontrei as caixas com luvas de borracha e curativos de gaze e concluí que não tinha a menor ideia de como se usava nada daquilo. Peguei o interfone e liguei para o pai de Will, mas o toque do telefone parecia desaparecer pela casa vazia. Dava para ouvir o som do outro lado do anexo.

Já estava quase ligando para a Sra. Traynor quando a porta dos fundos se abriu e Nathan entrou, envolto em volumosas camadas de roupas, um cachecol de lã e um chapéu que quase escondia sua cabeça inteira. Junto com ele, veio uma rajada de frio e uma lufada de neve.

 — Olá — cumprimentou, sacudindo a neve das botas e batendo a porta.

Parecia que a casa tinha de repente acordado de um devaneio.

— Ah, graças a Deus você chegou — falei. — Ele não está bem. Dormiu praticamente a manhã inteira e quase não bebeu nada. Eu não sabia o que fazer.

Nathan tirou o casaco.

— Tive de vir a pé. Os ônibus pararam de circular.

 Fui preparar um chá enquanto ele examinava Will.

Nathan apareceu na cozinha antes que a chaleira fervesse.

— Ele está ardendo de febre. Há quanto tempo está assim? — perguntou.

— A manhã toda. Achei que estava quente, mas ele disse que só queria dormir.

— Meu Deus. A manhã toda? Não sabe que o corpo dele não consegue controlar a própria temperatura? — Nathan passou por mim e foi mexer no armário de remédios. — Antibióticos. Fortes. — Mostrou-me um vidro, pegou um comprimido e triturou-o no pilão, furiosamente.

 Olhei por trás dele.

— Dei um paracetamol.

— Também podia ter dado uma balinha.

— Eu não sabia. Ninguém disse nada. Eu o enrolei nas cobertas.

— A instrução está naquela maldita pasta. Olhe, Will não transpira como nós. Na verdade, não transpira a partir do ponto atingido pelo acidente. Isso significa que, se tem um leve resfriado, a temperatura sobe demais. Vá buscar o ventilador. Vamos deixá-lo ligado até a febre abaixar. E traga uma toalha úmida para colocar envolta da nuca dele. Só conseguiremos um médico quando a neve parar. Maldita agência de enfermagem. Deviam ter feito isso de manhã.

Nathan estava irritado de uma forma que eu nunca tinha visto. Não estava nem falando comigo.

Corri para buscar o ventilador.

Demorou quase quarenta minutos para a temperatura do corpo de Will alcançar um nível normal novamente. Enquanto esperávamos o remédio superforte para febre fazer efeito, coloquei uma toalha na testa dele e outra na nuca, como Nathan recomendou. Tiramos a roupa dele, cobrimos seu peito com um lençol de algodão no e colocamos o ventilador na direção dele. Sem a camisa, as cicatrizes de seus braços ficaram bem evidentes. Fingimos não reparar nelas.

Will suportou tudo isso apenas respondendo sim ou não às perguntas de Nathan, muitas vezes num tom tão indistinto que eu não tinha certeza se ele sabia o que estava dizendo. Agora que o via na claridade, me dava conta de que ele estava doente mesmo e me senti péssima por não ter percebido antes. Pedi mil desculpas até Nathan dizer que isso já estava ficando irritante.

— Certo. Preste atenção no que estou fazendo. Pode ser que precise repetir sozinha mais tarde — disse ele.

Não me senti no direito de reclamar. Mas foi difícil não me sentir mal quando Nathan tirou a calça do pijama de Will, revelando um estômago fundo, e, com cuidado, retirou o curativo de gaze em volta do tubinho na barriga, limpou devagar e fez outro curativo. Mostrou-me como trocar o coletor descartável de urina na cama, explicou por que o coletor precisava ficar sempre abaixo do corpo dele e me surpreendi por não ter me importado de sair do quarto com o saco de líquido morno. Fiquei feliz que Will não estivesse vendo isso, não só porque faria algum comentário ácido, mas porque o fato de estar participando de sua rotina íntima também o deixaria constrangido de alguma forma.

— Pronto — disse Nathan. Finalmente, uma hora depois Will dormia com a roupa de cama limpa e, se não parecia totalmente bem, também não parecia terrivelmente mal.

— Deixe-o dormir. Mas acorde-o daqui a umas duas horas e faça-o ingerir líquidos. Dê mais remédios para febre às cinco, certo? A temperatura deve subir de novo, mas não antes das cinco.

Anotei tudo num bloquinho. Estava com medo de fazer algo errado.

— Hoje à noite você terá de repetir tudo o que acabamos de fazer. Tudo bem? — Nathan se encheu de roupa como um esquimó e saiu na neve. — Leia as minhas instruções. E não que nervosa. Qualquer problema, pode me ligar que eu explico tudo. Posso voltar, se for necessário.

* * *

Depois que Nathan foi embora, fiquei no quarto de Will. Estava com medo de sair de lá. No canto, havia uma velha poltrona de couro com uma luminária que talvez fosse remanescente de sua antiga vida e enrosquei-me na poltrona com um livro de contos que peguei na estante.

O quarto estava estranhamente calmo. Pelo vão entre as cortinas dava para ver o mundo lá fora, coberto de branco, calmo e lindo. Ali dentro estava quente e silencioso e só o zunido e o assobio do aquecimento central interrompiam meus pensamentos. Fiquei lendo e, de vez em quando, olhava Will dormir tranquilamente. Concluí que nunca houve uma época na minha vida em que pude ficar em silêncio, sem fazer nada. Numa casa como a minha, é impossível crescer acostumado ao silêncio: o aspirador estava sempre ligado, a TV berrando, as pessoas falando. Nos raros momentos em que a TV cava desligada, papai colocava seus velhos LPs do Elvis para tocar a todo volume. Um café também tem um barulho constante, com todo o falatório e tilintar de talheres.

Ali, eu podia ouvir meus pensamentos. E quase escutava meu coração batendo. Percebi, para minha surpresa, que gostava disso.

Às cinco, meu celular recebeu uma mensagem de texto. Will se mexeu e levantei da poltrona, preocupada em não incomodá-lo com o telefone.


Trens fora de circulação. Você por acaso poderia ficar esta noite? Nathan não pode voltar. Camilla Traynor.

Só pensei direito ao digitar a resposta.


Sem problema.


Liguei para meus pais e avisei que ia passar a noite nos Traynor. Minha mãe pareceu aliviada. Quando contei que receberia a mais por isso, ela se encheu de alegria.

— Ouviu essa, Bernard? — perguntou, sua mão tapando parte do bocal do telefone. — Vão pagar a ela por dormir lá.

Ouvi a exclamação de surpresa de meu pai.

 — Graças a Deus. Ela encontrou a profissão dos sonhos.

 Mandei uma mensagem de texto para Patrick dizendo que tinham me pedido para passar a noite lá e que mais tarde eu ligaria. Sua resposta chegou segundos depois.


Vou fazer cross-country na neve esta noite. É um bom treino para a Noruega! Te amo. P.


Pensei em como alguém poderia ficar tão animado com a perspectiva de correr a uma temperatura abaixo de zero, só de calça e camiseta.

Will dormia. Preparei um jantar para mim e descongelei uma sopa, caso ele quisesse mais tarde. Acendi a lareira, pois talvez ele acordasse mais disposto e quisesse ficar na sala. Li mais um conto e pensei em quanto tempo fazia que eu não comprava um livro. Quando era criança, eu adorava ler, mas desde então só me lembrava de ter lido revistas. Treen era a leitora. Era quase como se, ao pegar um livro, eu estivesse invadindo o seu espaço. Pensei nela e em Thomas indo embora para a universidade e percebi que ainda não sabia ao certo se aquilo me deixava triste ou alegre — ou se era algo mais complicado, um meio-termo.

Nathan ligou às sete. Pareceu aliviado porque eu ia passar a noite lá.

— Não consegui falar com o Sr. Traynor. Liguei para o telefone fixo da casa, mas caía direto na secretária eletrônica.

— É. Bom. Ele vai sair.

— Sair?

Senti um súbito pânico ao pensar que só ficaríamos Will e eu na casa a noite inteira. Estava com medo de cometer algum erro importante de novo, de colocar em risco a saúde de Will.

— Devo ligar para a Sra. Traynor, então? Fez-se um curto silêncio do outro lado da linha.

— Não, melhor não.

— Mas…

— Escute, Lou, ele costuma… costuma sair quando a Sra. Traynor está na cidade.

Levei alguns minutos para entender o que ele estava dizendo.

— Ah.

— É bom que você esteja aí. Se tem certeza de que Will melhorou, então voltarei de manhã cedo.


* * *

Existem horas normais e horas inúteis, nas quais o tempo para e escorre e a vida — a vida real — parece distante. Vi um pouco de TV, jantei, arrumei a cozinha e andei pelo anexo em silêncio. Por fim, voltei ao quarto de Will.

 Ele se mexeu quando fechei a porta e levantou um pouco a cabeça.

— Que horas são, Clark? — Sua voz estava meio abafada pelo travesseiro.

— Oito e quinze.

Ele deixou a cabeça cair no travesseiro e pensou a respeito.

— Posso beber alguma coisa?

Sua voz não estava agressiva ou ríspida. Foi como se, ao adoecer, ele finalmente se tornasse vulnerável. Dei um suco a ele e acendi a luz da cabeceira. Inclinei-me ao lado da cama e toquei sua testa como minha mãe fazia quando eu era criança. Ainda estava um pouco quente, mas não como antes.

— Mãos frias.

 — Você já reclamou delas mais cedo.

 — Foi? — Ele parecia realmente surpreso.

 — Quer uma sopa?

 — Não.

— Está confortável?

Eu nunca sabia o quanto ele estava desconfortável, mas suspeitava que devia ser mais do que demonstrava.

— Seria bom virar para o outro lado. Basta rolar meu corpo. Não precisa me fazer sentar.

Subi na cama e rolei-o, o mais delicadamente possível. Ele não irradiava mais um calor sinistro, só o calor usual de um corpo que ficou muito tempo embaixo do edredom.

— Posso fazer mais alguma coisa?

— Você não devia ir para casa?

— Não se preocupe, vou passar a noite aqui.

Lá fora, a última luz do dia já tinha sumido há algum tempo. Ainda nevava. A luz que entrava pela janela do vestíbulo era de um dourado suave, melancólico. Ficamos sentados ali num silêncio pacífico, olhando hipnotizados a neve cair.

— Posso perguntar uma coisa? — falei, por fim.

Vi as mãos dele sobre o lençol. Era estranho que parecessem tão normais e tão fortes, mas não servissem para nada.

— Imagino que vá perguntar de qualquer jeito.

— O que houve? — Eu não parava de pensar nas cicatrizes nos pulsos dele. Essa era a única pergunta que eu não podia fazer diretamente.

Ele abriu um olho.

— Quer saber como fiquei assim?

Concordei com a cabeça e ele fechou os olhos outra vez.

— Acidente de moto. Não por culpa minha, eu era um inocente pedestre.

— Pensei que tivesse sido esquiando, ou fazendo bungee jumping, ou algo assim.

— Todo mundo pensa. Foi uma piadinha de Deus. Eu estava atravessando a rua em frente à minha casa. Não aqui, em frente à minha casa em Londres.

Olhei os livros na estante. Entre os livros de bolso bastante manuseados da Penguin, havia títulos da área de negócios: Direito Corporativo, Administração, anuários sobre assuntos que eu ignorava.

 — E você não podia continuar no trabalho?

— Não. Nem com o apartamento, as férias, a vida… acho que você conheceu minha ex-namorada. — A mudança na voz não disfarçou a amargura. — Mas aparentemente eu devia ser grato, pois chegaram a pensar que eu fosse morrer.

— Você detesta isso? Morar aqui, quero dizer?

— Detesto.

— Não tem como voltar a morar em Londres?

— Desse jeito, não.

— Mas você pode melhorar. Nathan disse que há muitos avanços no tratamento desse tipo de lesão.

Will fechou os olhos de novo.

Aguardei, e então arrumei o travesseiro atrás da sua cabeça e estiquei o edredom sobre ele.

— Desculpe se faço muitas perguntas — pedi, sentando reta na cama. — Quer que eu saia?

— Não, fique um pouco. Converse comigo. — Engoliu em seco. Seus olhos se abriram outra vez e seu olhar encontrou o meu. Parecia insuportavelmente cansado. — Conte uma coisa boa.

Hesitei por um instante, depois recostei-me nos travesseiros ao lado dele. Ficamos ali no lusco-fusco, olhando os ocos de neve mal-iluminados desaparecerem na escuridão da noite.

 — Sabe… eu costumava pedir isso ao meu pai — disse, por fim. — Mas se eu lhe contar a resposta que ele me dava, você vai achar que sou louca.

— Mais louca do que já acho?

— Quando eu tinha um pesadelo, estava triste ou assustada por algum motivo, ele cantava para mim … — Comecei a rir. — Ah… não posso contar.

— Continue.

— Ele cantava para mim a Canção Molahonkey.

— Canção o quê?

— Canção Molahonkey. Eu achava que todo mundo conhecia.

 — Garanto a você, Clark, que sou virgem em matéria de Molahonkey. — murmurou Will.

Respirei fundo, fechei os olhos e comecei a cantar.

Gostaria de ir a Molahooooonkey 
A teeeeerra oooooonde naaaaaasci 
Para então tocaaaaar meu veeeeeelho baaaanjo 
Meu velho banjo que estragoooou.

— Meu Deus.

Respirei fundo outra vez.

Eu fui à loooooooja de consertooooos 
Ver o que eles poderiiiiiiiam fazeeeeer 
Eles disseeeeeeram que as cooooordas estragaaaram 
Não daaaaava mais para consertaaaar.

Fez-se um curto silêncio.

— Você é louca. A sua família inteira é.

— Mas a canção fazia efeito.

— E você canta mal à beça. Espero que seu pai fosse melhor.

— Acho que o que você quis dizer foi “obrigado, Srta. Clark, por tentar me distrair.”

— Acho que isso funcionou tanto quanto quase todo o apoio psicológico que tive. Certo, Clark. Faça outra coisa. Que não seja cantar.

Pensei um pouco.

— Hum… certo… Bom, outro dia, você reparou nos meus sapatos, não foi?

— Difícil não reparar.

— Pois minha mãe diz que gosto de sapatos diferentes desde os três anos. Ela comprou para mim galochas com purpurina azul-turquesa, o que na época era bem diferente, as crianças tinham apenas galochas verdes ou, no máximo, vermelhas. Ela diz que desde esse dia, não as tirei mais do pé. Usava para dormir, tomar banho e para ir à creche até no verão. Meu visual preferido eram essas galochas com purpurina e meiacalça de abelhinha.

— Meia-calça de abelhinha?

— Tinham listras pretas e amarelas.

— Que coisa linda.

— Eram meio cafonas.

— Bom, é verdade. Parece um pouco rebelde.

— Você pode achar que não mas, por incrível que pareça, Will Traynor, nem todas as garotas se vestem só para agradar os rapazes.

— Bobagem.

— Não, não é.

— As mulheres fazem tudo pensando nos homens. Todo mundo faz as coisas pensando em sexo. Não leu A Rainha Vermelha? — perguntou Will.

— Nunca ouvi falar. Mas garanto a você que não sentei na sua cama para cantar a Canção Molahonkey com segundas intenções. E aos três anos eu simplesmente adorava usar meias listradas.

Percebi que a preocupação que senti o dia todo aos poucos ia sumindo junto com os comentários de Will. Eu não era mais a única responsável por um pobre tetraplégico. Estava apenas sentada com um sujeito particularmente irônico, batendo um papo.

— Mas, e aí, o que aconteceu com as belas galochas de purpurina?

— Mamãe teve de jogar fora. Tive pé de atleta.

— Que ótimo.

— As meias também foram para o lixo.

— Por quê?

— Nunca soube. Mas fiquei arrasada. Nunca mais tive meias das quais gostasse tanto. Como aquelas não existem mais. Ou, se existem, não fazem para adultos.

— Que estranho.

— Ah, pode zombar. Você nunca gostou tanto assim de alguma coisa?

Eu mal o enxergava, o quarto estava praticamente no escuro. Podia ter acendido a luz, mas algo me impediu. E assim que percebi o que tinha dito, me arrependi.

— Sim — disse ele, baixinho. — Já gostei.

 Conversamos mais um pouco até que Will acabou adormecendo. Fiquei ali observando sua respiração, e algumas vezes imaginava o que ele diria caso acordasse e me visse ali encarando-o, olhando para o seu cabelo comprido demais, os olhos fundos e a barba por fazer. Mas não conseguia me mexer. As horas tinham se tornado irreais, uma ilha fora do tempo. Eu era a única pessoa na casa e tinha medo de deixá-lo.

Pouco depois das onze horas, percebi que ele começou a transpirar de novo, sua respiração ficou mais curta. Acordei-o e dei um remédio para febre. Ele não falou nada, só murmurou um obrigado. T roquei o lençol que o cobria e as fronhas e quando ele finalmente adormeceu de novo, deitei perto dele e, bem depois, também peguei no sono.

* * *

Acordei com alguém me chamando. Estava dormindo na carteira da sala de aula e o professor batia no quadro-negro, repetindo meu nome sem parar. Eu sabia que tinha de prestar atenção, sabia que o professor ia considerar aquele cochilo uma falta de respeito, mas não conseguia levantar a cabeça da carteira.

 — Louisa.

— Hummmm.

— Louisa.

A carteira era terrivelmente macia. Abri os olhos. As palavras ecoavam acima da minha cabeça, sussurradas, mas com muita ênfase. Louisa.

Eu estava na cama. Pisquei, consegui focar a vista e vi Camilla T raynor me olhando de cima. Ela usava um pesado casaco de lã e uma bolsa pendurada no ombro.

— Louisa.

Levantei-me, assustada. Ao meu lado, Will dormia sob as cobertas, a boca entreaberta, os braços dobrados na frente do corpo. A luz entrava pela janela, mostrando uma manhã clara e fria.

— Hum.

— O que você está fazendo?

Senti como se tivesse sido surpreendida fazendo algo horrível. Esfreguei o rosto, tentando entender o que se passava. Por que eu estava ali? O que devia dizer a ela?

— O que está fazendo na cama de Will?

 — Will… — repeti, baixinho. — Will não estava bem… achei que devia ficar de olho…

— O que significa não estava bem? Venha, vamos para o corredor. — Ela saiu do quarto, esperando que eu a seguisse, claro.

Fui atrás dela tentando ajeitar minhas roupas. Tinha a horrível impressão de que minha maquiagem estava toda borrada.

Ela fechou a porta do quarto de Will.

Fiquei de frente para ela, tentando arrumar o cabelo enquanto concatenava as ideias.

— Will estava com febre. Nathan conseguiu abaixar a temperatura quando chegou, mas eu não sabia daquele negócio de equilíbrio da temperatura corporal e queria car de olho nele… Nathan disse para eu ficar… — Minha voz estava grossa, esquisita, e eu não tinha certeza se o que falava tinha alguma coerência.

— Por que não me ligou? Se ele estava doente, você devia ter me ligado na mesma hora. Ou para o Sr. Traynor.


Meus neurônios pareceram se conectar de repente. O Sr.Traynor. Ai, meu Deus. Olhei o relógio. Eram quinze para as oito.

— Eu não… Nathan parecia…

— Escute, Louisa. Realmente não se trata de ciência interplanetária. Se Will estava doente a ponto de você precisar dormir no quarto dele, devia ter me avisado.

— Sim.

Pisquei, encarando o chão.

— Não entendo por que não me ligou. Tentou ao menos ligar para o Sr. Traynor?

Nathan disse para eu não contar nada.

— Eu…

Nesse instante, a porta do anexo se abriu e o Sr. T raynor apareceu com um jornal dobrado embaixo do braço.

— Você voltou! — disse ele para a esposa, tirando os ocos de neve dos ombros. — Fiz um esforço para conseguir sair e comprar jornal e leite. As estradas estão muito perigosas. Tive que ir até Hansford Corner para evitar as placas de gelo. Ela o encarou e por um momento me perguntei se havia percebido que o marido usava a mesma camisa e o mesmo suéter do dia anterior.

— Sabia que Will passou a noite doente?

Ele olhou diretamente para mim. Olhei para meus pés. Acho que nunca fiquei tão sem jeito.

— Você me ligou, Louisa? Desculpe… não ouvi. Acho que o interfone de casa está com defeito. Ele já não funcionou outras vezes. E eu também não estava me sentindo muito bem na noite passada.

Eu ainda estava usando as meias de Will. Olhei para elas, imaginando o que a Sra. Traynor ia achar daquilo também.

Mas ela parecia distraída.

— Foi uma longa viagem até em casa. Acho que… vamos deixar isso para lá. Mas, se acontecer algo parecido de novo, você deve me ligar imediatamente. Entendeu?

Não queria olhar para o Sr. Traynor.

— Sim — respondi, e sumi dali ao entrar na cozinha.


Capítulo 7

A primavera chegou durante a noite, como se o inverno fosse um hóspede indesejado que de repente resolveu vestir seu casaco e desaparecer sem se despedir. Tudo ficou mais verde, as ruas foram banhadas por um sol fraco, o ar agora perfumado. O dia tinha sinais florais e acolhedores, com trinados primaveris como fundo musical.

Não notei nada disso. Tinha passado a noite na casa de Patrick. Era a primeira vez que nos víamos em uma semana devido a seu rigoroso programa de treinamento mas, após quarenta minutos imersos numa banheira com meio pacote de sais de banho, Patrick se mostrou tão cansado que mal conseguia conversar comigo. Massageei suas costas numa rara tentativa de seduzi-lo, mas ele resmungou que estava mesmo cansado demais e fez um gesto com as mãos como se me quisesse longe. Quatro horas depois, eu continuava acordada encarando o teto.

Patrick e eu nos conhecemos quando eu ainda estava no meu primeiro emprego, como estagiária no The Cutting Edge, o único salão de beleza unissex de Hailsbury. Ele entrou quando Samantha, a dona do salão, estava ocupada, e disse que queria passar máquina quatro no cabelo. Fiz o corte que ele depois descreveu como não só o pior de sua vida mas o pior de toda a História. Três meses depois, cheguei à conclusão de que gostar de mexer no meu próprio cabelo não significava necessariamente saber cortar o dos outros. Saí do salão e comecei a trabalhar com Frank.

Quando começamos a namorar, Patrick trabalhava com vendas e suas coisas preferidas eram: cerveja, chocolate artesanal, falar de esportes e sexo (fazer, não falar), nessa ordem. Uma boa noite para nós deveria incluir essas quatro coisas. Ele tinha uma aparência comum, não chegava a ser bonito; seu traseiro era maior que o meu, mas eu gostava disso. Gostava da solidez do seu corpo e de me enroscar nele. Era órfão de pai e eu admirava o jeito como ele tratava a mãe, como era protetor e solícito. E seus quatro irmãos e irmãs lembravam a série de TV “Os Waltons”. Pareciam se gostar de verdade. Na primeira vez que saímos juntos, uma vozinha na minha cabeça disse: Este homem jamais a magoará, e nada do que tenha feito nos sete anos seguintes me fez duvidar disso.

E então, ele virou maratonista.

A barriga de Patrick não afundava mais quando eu me aninhava nele, era dura, impenetrável como uma tábua, e ele gostava de levantar a camiseta e bater com alguns objetos nela para mostrar o quão dura era. O rosto dele estava seco e desgastado devido ao tempo que passava ao ar livre. Suas coxas tinham músculos sólidos. Isso seria bem sexy caso ele quisesse fazer sexo. Mas só fazíamos umas duas vezes por mês e eu não era do tipo que pedia.

Parecia que quanto mais ele cava em forma, mais obcecado cava pelo próprio corpo e menos interessado em mim. Perguntei a ele algumas vezes se não gostava mais de mim e ele pareceu bem enfático.

— Você é maravilhosa — disse. — Eu só estou exausto. Mas não quero que você emagreça. Mesmo se eu juntasse os peitos de todas as garotas da academia, não daria para fazer um peito decente.

Tive vontade de perguntar de onde exatamente ele havia tirado uma equação tão complexa mas, no fundo, era uma coisa bonita de se dizer, então deixei por isso mesmo.

Eu queria me interessar pelo que ele fazia, queria mesmo. Ia às reuniões do clube de triatlo e puxava papo com as outras garotas. Mas logo percebi que eu era uma anomalia, não havia outra namorada como eu: todo mundo era solteiro ou se relacionava com alguém que também tinha um físico impressionante. Os casais incentivavam-se a malhar, passavam os ns de semana usando shorts com elásticos e carregavam nas carteiras fotos dos dois de mãos dadas completando mais uma prova de triatlo, ou exibindo medalhas, orgulhosos. Era indescritível.

— Não sei do que você está reclamando — disse minha irmã, quando lhe contei. — Depois que o Thomas nasceu, só transei uma vez.

— É? Com quem?

— Ah, um cara que entrou na floricultura querendo um Buquê de Cores Vibrantes — contou ela. — Eu só queria confirmar que ainda sabia transar.

Quando fiquei boquiaberta, ela acrescentou:

 — Ah, não faça essa cara. Não foi durante o horário de trabalho. E o buquê era para um funeral. Se fosse para a esposa, claro que eu não tocaria nele nem com uma pétala.

Não é que eu fosse uma maníaca sexual; afinal, Patrick e eu já estávamos juntos havia bastante tempo. É que algum lado perverso meu começou a questionar minha capacidade de sedução.

 Patrick nunca se importou com o fato de eu me vestir “criativamente”, como ele dizia. Mas, e se ele não estivesse sendo totalmente sincero sobre isso? O trabalho e toda a vida social dele agora giravam em torno do controle da carne: domá-la, reduzi-la, aprimorá-la. E se, entre todos aqueles traseiros apertados em trajes esportivos, o meu deixasse de ser atraente? E se minhas curvas, que sempre julguei agradavelmente voluptuosas, agora parecessem flácidas para o seu olhar exigente?

 Esses eram os pensamentos que passavam pela minha cabeça quando a Sra. Traynor
apareceu e mandou que Will e eu saíssemos de casa.

— Encomendei uma limpeza especial para a primavera, então pensei que vocês podiam aproveitar o lindo dia enquanto eles estão aqui.

Nós nos entreolhamos e Will levantou de leve as sobrancelhas.

— Isso não é exatamente uma sugestão, não é, mãe?

— Só achei que seria uma boa ideia você tomar um ar fresco — disse ela. — A rampa está pronta. Talvez, Louisa, você possa levar um pouco de chá?

Não era uma ideia totalmente descabida. O jardim estava lindo. Como se, graças ao leve aumento de temperatura, tudo tivesse de repente decidido car um pouco mais verde. As ores dos narcisos surgiram do nada, seus bulbos amarelados pareciam um prenúncio que mais ores viriam. Botões surgiam em galhos marrons, perpétuas abriam caminho na terra escura e lamacenta. Escancarei as portas e saímos. Will conduziu sua cadeira pelo caminho de pedras York. Ele apontou para um banco de ferro com uma almofada e fiquei ali sentada por um tempo, nossos rostos na direção do sol fraco, ouvindo as andorinhas agitarem as cercas vivas.

 — O que você tem?

— Como assim?

— Está calada.

— Você disse que queria que eu ficasse quieta.

— Não tanto. Está me assustando.

 — Estou bem — eu disse. E acrescentei: — É só um probleminha com meu namorado, se quer saber.

— Ah, o Corredor — disse ele.

Abri os olhos para conferir se ele estava zombando de mim.

— O que aconteceu? Vamos, conte para o tio Will.

— Não.

— Minha mãe vai manter as faxineiras lá enlouquecidas por mais uma hora, no mínimo. Vamos ter de conversar sobre alguma coisa.

Endireitei-me no banco e virei-me para ele. Sua cadeira de rodas tinha um botão de controle que elevava o assento e deixava Will no mesmo nível das outras pessoas. Ele não costumava usar isso, pois o deixava tonto com frequência, mas dessa vez usou. Eu tinha de olhar para ele.

Apertei o casaco em volta de mim e semicerrei os olhos.

— Pois então, o que quer saber?

— Há quanto tempo estão juntos? — perguntou ele.

— Pouco mais de seis anos.

Ele pareceu surpreso.

— Isso é bastante tempo.

— É, pois é — concordei.

Inclinei-me e ajeitei a manta sobre ele. O sol decepcionou, prometeu mais do que cumpriu. Pensei em Patrick, que acordara às seis e meia em ponto para sua corrida matinal. Talvez eu também devesse correr, assim nós viraríamos um daqueles casais que usam os mesmos conjuntos de lycra. Talvez eu devesse comprar uma lingerie sensual e procurar na internet dicas para apimentar o sexo. Sabia que não ia fazer nenhuma das duas coisas.

— O que ele faz?

— É personal trainer.

— Por isso ele corre.

— Por isso ele corre.

— Como ele é? Em três palavras, caso você fique constrangida.

Pensei na sua pergunta.

 — Positivo. Fiel. Obcecado com quantidade de calorias.

— São sete palavras.

— Você leva quatro de graça. E como ela era?

— Quem?

— Alicia? — Olhei para ele do jeito como ele havia me olhado: direto. Will respirou fundo e encarou um grande plátano. Seu cabelo caiu nos olhos e me contive para não colocá-los atrás da orelha.

— Linda. Sensual. Alto custo de manutenção. Incrivelmente insegura.

— Como ela pode ser insegura? — As palavras saíram da minha boca sem que eu pudesse evitar.

Ele parecia estar achando graça.

 — Você não vai acreditar. Garotas como Lissa investem tanto na própria aparência que acham que só têm isso. Estou sendo injusto, na verdade. Ela tem outros dons: bom gosto para roupas e decoração. Consegue fazer qualquer coisa ficar linda.

Segurei-me para não dizer que qualquer um consegue fazer com que as coisas fiquem bonitas se possuem uma carteira tão recheada quanto uma mina de diamantes.

 — Ela mudava algumas coisas de lugar em qualquer cômodo e tudo cava completamente diferente. Nunca entendi como conseguia fazer isso. — Apontou com a cabeça para a casa. — Foi ela quem arrumou o anexo, assim que me mudei para cá.

 Pensei naquela sala decorada com perfeição. E percebi que minha admiração pelo local diminuiu um pouco.

— Há quanto tempo estavam juntos?

— Oito, nove meses.

— Não é muito.

— Para mim, era.

— Como se conheceram?

— Num jantar. Num jantar terrível. E vocês?

— No salão de cabeleireiro onde eu trabalhava. Ele era meu cliente.

— Ah. Você era o algo a mais dele no fim de semana.

Acho que deixei transparecer minha expressão confusa, pois ele balançou a cabeça e disse, baixinho:

— Deixa para lá.

Podíamos ouvir o barulho de aspirador de pó vindo de dentro da casa. Eram quatro faxineiras com aventais iguais. Imaginei o que elas tinham para fazer durante duas horas naquele pequeno anexo.

— Sente falta dela?

Dava para ouvir as faxineiras falando entre elas. Alguém tinha aberto uma janela e de vez em quando o ar frio carregava suas risadas até nós.

Will parecia estar observando alguma coisa lá longe.

— Sentia. — Virou-se para mim, com uma voz neutra. — Mas tenho pensado no assunto e cheguei à conclusão de que ela e Rupert formam um belo casal.

Concordei com a cabeça.

— Eles vão dar uma festa de casamento ridícula, ter um ou dois pestinhas, como você diz, comprar uma casa no campo e daqui a cinco anos ele estará transando com a secretária — falei.

— Você deve estar certa.

 Eu me entusiasmei.

— E ela vai ficar um pouco cismada com ele, sem saber direito o motivo e vai enchê-lo de críticas durante jantares horríveis, deixando os amigos constrangidos, e ele não vai querer se separar dela por temer a pensão.

Will virou-se para me olhar.

 — E eles vão fazer sexo uma vez a cada mês e meio e ele vai adorar os lhos, mas não vai se esforçar o mínimo para cuidar deles. E ela vai ter um cabelo perfeito emoldurando aquela cara comprida — franzi os lábios — que jamais demonstra o que quer dizer, e vai se viciar em Pilates, ou talvez compre um cachorro ou um cavalo e acabe se apaixonando pelo instrutor de equitação. Aos quarenta, ele vai começar a praticar corrida e, talvez, compre uma Harley-Davidson que ela vai detestar; todos os dias, no escritório, ele vai olhar os rapazes mais jovens e ouvir sua conversa nos bares sobre quem eles pegaram no m de semana ou onde foram para se divertir e, sem nunca entender como, vai se sentir um babaca.

Virei-me.

Will estava olhando fixamente para mim.

— Desculpe — falei, depois de um momento —, não sei bem de onde tirei isso.

 — Começo a ter um pouco de pena do Corredor.

— Ah, não foi ele que me deixou assim — exclamei. — Foram todos esses anos de trabalho no café. Lá, a gente ouve e vê todos os tipos de comportamento humano. Você não imagina o que existe.

 — Por isso você nunca se casou?

Pisquei.

— Acho que sim.

Não quis dizer que na verdade nunca fui pedida em casamento.

* * *

Pode parecer que não fazíamos muita coisa. Mas, na verdade, os dias com Will eram sutilmente diferentes, variando conforme o humor dele e, mais importante, a intensidade das dores. Alguns dias, quando eu chegava, percebia pela rigidez do maxilar dele que não queria falar comigo, nem com ninguém. Assim, eu me ocupava do anexo, tentando prever o que ele ia precisar para não ter que perguntar.

 As dores dele tinham causas variadas. Havia a dor pela perda muscular — apesar de toda a sioterapia feita por Nathan, Will tinha muito menos músculos para sustentar o corpo. Havia a dor de estômago causada por problemas digestivos; a dor no ombro; a dor por infecção urinária — inevitável, apesar dos esforços de todos. Ele também tinha uma úlcera estomacal devido ao excesso de analgésicos que tomara como se fossem balinhas no início da recuperação.

De vez em quando, tinha escaras na pele por car sentado na mesma posição durante muito tempo. Por duas vezes, precisou car na cama para que as feridas cicatrizassem, mas ele detestava car na cama. Ficava deitado ouvindo o rádio, os olhos brilhando de raiva de tal forma que nem conseguia controlar. Will também tinha dores de cabeça. Para mim isso era efeito colateral da raiva e frustração que sentia. Ele tinha muita energia mental mas não podia usá-la para nada. Tinha de desaguar em alguma coisa.

Mas o que mais incomodava era a incessante queimação nas mãos e nos pés que não o deixava pensar em outra coisa. Eu trazia uma tigela de água gelada e mergulhava as mãos dele, ou enrolava os pés em uma anela fria na esperança de amenizar seu desconforto. Um músculo da sua mandíbula se retesava e cava pulsando e de vez em quando Will parecia sair do ar, como se a única forma de não sentir dor fosse deixar o próprio corpo. Surpreendentemente, eu havia me acostumado às suas necessidades físicas. Parecia injusto que, além de não poder usar ou sentir as mãos e os pés, eles ainda causassem tanto desconforto.

Apesar de tudo, ele não reclamava. Por isso levei semanas para perceber que estava sofrendo. Agora eu conseguia decifrar o cansaço em seu olhar, os silêncios, o jeito como ele parecia se refugiar dentro de si mesmo. Ele apenas pedia:

— Pode trazer água gelada, Louisa? — ou: — Acho que preciso de alguns
analgésicos.

 Às vezes, a dor era tanta que ele ficava pálido, de um branco pastoso. Esses eram os piores dias.

Mas nos outros dias nós nos dávamos muito bem. Ele não parecia mais mortalmente ofendido quando eu falava com ele, como no começo. Naquele dia, tive a impressão de que ele estava sem dor. Quando a Sra. T raynor veio nos avisar que as faxineiras demorariam ainda uns vinte minutos, z mais um chá para nós e demos outra volta vagarosa pelo jardim, Will conduzindo a cadeira pelo caminho de pedras e eu olhando minhas sapatilhas de cetim escurecerem na grama molhada.

— Interessante escolha de sapatos — observou Will.

Eram verde-esmeralda. Encontrei-as num brechó. Patrick disse que eu ficava parecendo um duende drag queen.

— Sabe, você não se veste como alguém daqui. Sempre aguardo ansioso a próxima combinação maluca de roupas com que vai aparecer.

— Como é que “alguém daqui” deveria se vestir?

Ele virou a cadeira de rodas um pouco à esquerda para evitar um galho no caminho.

— Com roupas esportivas de fleece. Ou, se for como minha mãe, com terninhos da Jaeger ou da Whistles. — Ele olhou para mim. — Então, onde você adquiriu seu gosto exótico? Morou fora?

 — Não.

— Sempre morou aqui? Onde trabalhou?

 — Aqui, só. — Virei-me para ele e cruzei os braços, na defensiva. — O que tem de estranho nisso?

— É uma cidade tão pequena. Tão limitada. Tudo gira em torno do castelo. — Paramos no meio do caminho e olhamos para ele, surgindo a distância em sua estranha colina que lembrava um domo, tão perfeita que parecia desenhada por uma criança. — Sempre pensei que esse é o tipo de lugar para onde as pessoas retornam quando se cansam de todo o resto. Ou quando não têm imaginação suciente para ir para outro canto.

— Obrigada.

— Não há nada de errado nisso. Mas… céus. Não chega a ser um lugar dinâmico, não acha? Não é cheio de ideias, pessoas interessantes e oportunidades. Aqui consideram uma atitude subversiva a loja de turistas vender jogo americano com uma foto diferente que não a da miniferrovia.

Tive de rir. Na semana anterior, o jornal local tinha publicado uma reportagem exatamente com essa questão.

— Você tem vinte e seis anos, Clark. Devia estar lá fora, buscando conquistar o mundo, arrumando confusão em bares, mostrando seu estranho guarda-roupa para homens espertos…

— Estou contente aqui — disse.

— Bom, não deveria.

— Você gosta de dizer às pessoas o que elas devem fazer, não?

— Só quando estou certo — disse ele. — Pode arrumar meu copo? Não consigo alcançar.

Virei o canudinho do copo para que ele pudesse alcançá-lo mais facilmente e esperei enquanto ele bebia. As pontas das suas orelhas estavam rosadas por causa do frio. Ele fez uma careta.

— Meu Deus, para quem vivia disso, você faz um chá horrível.

— Você está acostumado com chá lésbico — falei. — Aquele negócio de erva Lapsang souchong.

— Chá lésbico! — Ele quase se engasgou ao rir. — Bom, é melhor do que esse verniz de escada. Meu Deus. Dá para apoiar uma colher em cima.

— Quer dizer que até o meu chá é ruim. — Sentei-me no banco de frente para ele. — E o que acha de você dar palpite sobre cada coisa que eu digo ou faço, quando ninguém mais diz nada?

— Continue, Louisa Clark. Diga o que acha.

— De você?

Ele soltou um suspiro dramático.

— E eu tenho escolha?

— Você podia cortar o cabelo. Desse jeito, parece um mendigo.

— E você agora parece a minha mãe.

— Bom, você fica horrível. Podia fazer a barba, pelo menos. Essa cabeleira toda não dá coceira?

Ele me olhou de rabo de olho.

— Dá, não é? Eu sabia. Certo: rasparei tudo esta tarde.

 — Ah, não.

 — Sim, senhor. Você pediu a minha opinião. Pois é essa. Não precisa fazer nada, pode deixar comigo.

— E se eu não quiser? — Eu farei de qualquer jeito. Se car mais comprido, daqui a pouco estarei tirando restos de comida do seu cabelo. E se isso acontecer, sinceramente, terei de processá-lo por comportamento inadequado no local de trabalho.

Ele sorriu, como se estivesse se divertindo comigo. Pode parecer um pouco triste, mas os sorrisos de Will eram tão raros que fiquei meio orgulhosa de provocar um.

— Escute, Clark. Pode me fazer um favor? — perguntou ele.

— O quê?

— Coce a minha orelha, sim? Está me deixando doido.

— Se eu coçar, vai me deixar cortar seu cabelo? Só uma aparadinha?

— Não abuse da sorte.

— Psiu. Não me deixe nervosa. Não sou muito boa com a tesoura.

* * *

Encontrei as lâminas de barbear e um pouco de creme no armário do banheiro, enados atrás de lenços de papel e do algodão como se não fossem usados há muito tempo. Convenci-o a entrar com a cadeira de rodas no banheiro, enchi a pia com água morna, z Will inclinar um pouco a cabeça e coloquei uma toalha quente em seu queixo.

— O que é isso? Você vai dar uma de barbeiro? Para que essa toalha?

 — Não sei — confessei. — É assim que fazem nos lmes. Do mesmo jeito usam uma bacia de água quente e toalhas brancas quando uma mulher dá a luz.

 Não consegui ver sua boca, mas seus olhos se apertaram, um pouco divertidos. Eu queria que continuassem assim. Queria que ele fosse feliz, que seu rosto perdesse aquele ar assustado e alerta. Comecei a tagarelar. Contei piadas. Cantarolei baixinho. Fiz de tudo para estender o momento antes que ele voltasse a ser sombrio.

Enrolei as mangas da minha blusa e comecei a passar o creme de barbear a partir do seu queixo, indo até as orelhas. Então hesitei ao segurar a lâmina próximo a seu rosto.

— Agora é o momento de avisar a você que até hoje só raspei pernas?

Ele fechou os olhos e recostou-se. Comecei a raspar com cuidado, tudo o que se ouvia era o barulho da lâmina quando eu a mergulhava na água da pia. Trabalhei em silêncio, estudando o rosto de Will T raynor, as rugas nos cantos da boca que pareciam prematuramente fundas para a idade dele. Raspei a costeleta e vi as cicatrizes que muito provavelmente eram do acidente. Reparei também nas olheiras escuras de noites e noites insones, na ruga entre as sobrancelhas, que indicava sua dor silenciosa. A pele emanava uma doçura cálida, o cheiro do creme de barbear e algo bem característico de Will, discreto e caro. Seu rosto começou a aparecer e percebi como devia ter sido fácil para ele seduzir alguém como Alicia.

Trabalhei devagar e com cuidado, incentivada pelo fato de ele estar calmo. Passou pela minha cabeça que o único momento em que alguém tocava nele era para algum procedimento médico ou terapêutico, então encostei os dedos de leve na sua pele, tentando me afastar ao máximo da rispidez desumana de Nathan e do médico.

Fazer a barba de Will foi um momento curiosamente íntimo. À medida que prossegui, notei que havia pensado que a cadeira de rodas seria um obstáculo, que a deficiência física impediria qualquer aspecto sensual. Por mais estranho que fosse, não estava sendo assim. Era impossível estar tão perto de alguém, sentir sua pele sob os dedos, respirar o mesmo ar, fiar com o rosto a centímetros do dele, sem me atrapalhar um pouco. Quando cheguei à outra orelha, senti-me esquisita, como se tivesse ultrapassado uma linha invisível.

 Talvez Will conseguisse perceber as mudanças sutis na pressão que eu exercia em sua pele; talvez prestasse mais atenção aos humores das pessoas ao seu redor. Mas abriu os olhos e encarou diretamente os meus.

 Fez-se uma pequena pausa e ele pediu, direto:

— Por favor, não diga que raspou também as minhas sobrancelhas.

— Só uma. — Lavei a lâmina, esperando que o rubor sumisse do meu rosto quando me virasse de volta. — Pronto — disse, finalmente. — Acho que já está bom, não? Nathan já deve estar chegando.

— E o cabelo? — perguntou ele.

— Quer mesmo que eu corte?

— Tem minha permissão para isso.

— Achei que não confiasse em mim.

Ele deu de ombros como pôde. Um movimento bem discreto.

— Se você ficar sem resmungar comigo por algumas semanas, acho que é um preço justo a pagar.

— Ai, meu Deus, sua mãe vai ficar tão satisfeita — exclamei, limpando a espuma de barbear da mão.

— Bom, não vamos deixar que isso nos atrapalhe.

* * *

Cortei o cabelo dele na sala. Acendi a lareira, coloquei um filme — um suspense americano — e estiquei uma toalha em volta dos seus ombros. Avisei que havia perdido a prática com as tesouras, mas que o cabelo não podia ficar pior do que estava.

— Obrigado pelo elogio — respondeu ele.

Dei início aos trabalhos, passando os dedos pelo seu cabelo, tentando lembrar o pouco que tinha aprendido. Will assistia ao filme, parecendo relaxado e quase contente. De vez em quando, fazia algum comentário — de quais outros filmes o ator principal tinha participado, onde ele tinha assistido pela primeira vez — e eu fazia um ruído vagamente interessado (como eu faço quando Thomas me mostra seus brinquedos). Mas todo o meu foco estava centrado em não destruir o cabelo dele. Finalmente, após ter cortado a pior parte fora, postei-me diante dele para ver o resultado.

— Então? — Ele pausou o DVD.

Endireitei-me.

— Não sei se gosto de ver seu rosto tão exposto. É meio enervante.

— Sinto mais frio assim — observou ele, mexendo a cabeça de um lado para outro,
como se testasse a nova sensação.

— Espere, vou pegar dois espelhos. Assim você vai conseguir ver direito. Mas não se mexa. Ainda falta o acabamento. Talvez eu corte uma orelha.

Eu estava no quarto procurando um espelhinho nas gavetas quando ouvi a porta. Dois pares de pés apressados, a voz alta e preocupada da Sra. Traynor.

— Georgina, não, por favor.

A porta da sala foi aberta de supetão. Peguei o espelho e saí correndo do quarto. Não queria ser pega de surpresa longe de Will novamente. A Sra. T raynor estava em pé na porta da sala, as duas mãos sobre a boca, como se visse algo surpreendente.

 — Você é o homem mais egoísta que já conheci! — uma jovem menina começou a gritar. — Não acredito nisso, Will. Você já era egoísta antes, agora piorou.

— Georgina. — A Sra. Traynor olhou fixo para mim quando me aproximei. — Por favor, pare.

Entrei na sala atrás dela. Will, com a toalha nos ombros, as rodas da cadeira cobertas de pequenos tufos de cabelo castanho, olhava para uma jovem. Ela tinha um cabelo negro enroscado em um nó bagunçado na nuca. Sua pele era bronzeada, e ela estava usando jeans caros e desbotados e botas de camurça. Assim como Alicia, seus traços eram lindos e perfeitos, os dentes de um branco incrível de anúncio de creme dental. Vi isso porque, mesmo com o rosto vermelho de raiva, ela continuava sibilando para ele.

— Não acredito. Não acredito que tenha pensado nisso. O que você…

— Por favor, Georgina. — O tom de voz da Sra. Traynor aumentou, ríspido. — Não é hora para isso.

Will, o rosto impassível, olhava para um ponto invisível à frente.

— Hum…Will? Precisa de ajuda? — perguntei, baixinho.

— Quem é você? — quis saber a jovem, virando-se para mim.Foi então que vi seus olhos cheios de lágrimas.

— Georgina — disse Will. — Esta é Louisa Clark, minha cuidadora e cabeleireira incrivelmente criativa. Louisa, esta é minha irmã, Georgina. Parece que ela veio de avião direto da Austrália para berrar comigo.

— Não seja engraçadinho — disse Georgina. — Mamãe me contou. Contou tudo.

Ninguém se mexeu.

— Vou deixá-los a sós um minuto — disse.

— Boa ideia. — Os nós dos dedos da Sra. T raynor estavam brancos sobre o braço do sofá.

Saí da sala de mansinho.

— Aliás, Louisa, aproveite para tirar seu intervalo de almoço.

Aquele ia ser um dia de buscar abrigo em algum ponto de ônibus. Peguei meus sanduíches na cozinha, vesti o casaco e desci pela trilha dos fundos.

Ao sair, ouvi a voz de Georgina Traynor ficar ainda mais alta dentro da casa.

— Will, nunca passou pela sua cabeça que, por incrível que pareça, tudo isso pode não se tratar apenas de você?

* * *

Quando voltei, exatamente meia hora depois, a casa estava em silêncio. Nathan lavava uma caneca na pia da cozinha.

Ao me ver, virou-se na minha direção.

— Como você está?

— Ela já foi embora?

— Quem?

— A irmã.

Ele olhou para trás

. — Ah. Era ela? Sim, já foi. Quando cheguei, estava saindo de carro. Problemas de família, não?

 — Não sei — respondi. — Eu estava cortando o cabelo de Will quando ela entrou e começou a brigar com ele. Pensei que fosse outra namorada.

Nathan deu de ombros.

Percebi que, mesmo se soubesse, Nathan não se interessaria pelos detalhes pessoais da vida de Will.

— Ele está meio calado. Aliás, excelente trabalho com a barba. É bom tirá-lo de trás de todo aquele mato.

 Voltei para a sala. Will olhava para a tela da TV, que continuava congelada na mesma cena de quando saí.

 — Quer que eu ligue de novo? — perguntei.

Por um instante, ele pareceu não me ouvir. A cabeça estava afundada nos ombros, a expressão relaxada de antes tinha sido coberta por um véu. Will se fechara novamente num lugar onde eu não conseguia entrar.

Piscou, como se só então tivesse notado minha presença ali.

— Claro — respondeu.

* * *

Eu carregava um cesto de roupas lavadas pelo corredor quando as ouvi. A porta do anexo estava entreaberta e as vozes da Sra. Traynor e da filha vieram pelo longo corredor, em ondas abafadas. A irmã de Will soluçava baixinho, toda a raiva da sua voz tinha sumido. Soava quase como uma criança.

— Deve haver alguma coisa que eles possam fazer. Algum avanço da medicina. Não podem levá-lo para os Estados Unidos? As coisas estão sempre se aprimorando por lá.

— Seu pai está atento a todos os progressos. Mas não, querida, não há nada de… concreto.

— Ele está tão… diferente agora. Como se estivesse determinado a não ver o lado bom em nada.

— Ele está assim desde o começo, George. É que você só o viu agora. Na época, acho que ele ainda estava… determinado. Antes, ele tinha certeza de que podia melhorar em algum aspecto.

 Fiquei um pouco constrangida por ouvir uma conversa tão pessoal. Mas a excentricidade do assunto fez com que eu me aproximasse. Avancei na direção da porta sem fazer barulho, os pés silenciosos dentro das meias.

— Olhe, seu pai e eu não contamos a você. Não queríamos preocupá-la. Mas ele tentou… — ela lutou com as palavras. — Will tentou… tentou se matar.

— O quê?

— Seu pai o encontrou. Aconteceu em dezembro. Foi… foi horrível.

Embora isso apenas confirmasse o que eu já desconfiava, senti todo o sangue sumir das minhas veias. Ouvi um choro abafado, murmúrios de consolo. Fez-se outro longo silêncio. Então Georgina voltou a falar, com a voz rouca de tristeza.

— E a moça…?

 — Sim. Louisa está aqui para garantir que nada parecido aconteça de novo.

Congelei. Do outro lado do corredor, vindo do banheiro, pude ouvir Nathan e Will falando baixinho, sem tomar conhecimento da conversa a poucos metros de distância. Dei um passo à frente, aproximando-me mais da porta. Acho que tive certeza disso quando vi as cicatrizes nos pulsos dele. Anal de contas, tudo fazia sentido: a preocupação da Sra. Traynor para que eu não deixasse Will sozinho por muito tempo, a raiva dele por eu estar lá, o fato de eu ter sentido que não tinha nada de útil para fazer ali. Eu era uma babá. Eu não sabia, mas Will sim, e me detestava por isso.

Peguei na maçaneta da porta me preparando para fechá-la sem fazer barulho. Imaginei o quanto Nathan sabia. E se Will estava mais feliz agora. Percebi que estava me sentindo, de forma egoísta, um pouco aliviada por Will não ser contra mim, mas contra minha presença lá — ou de qualquer outra pessoa — para vigiá-lo. Meus pensamentos se atropelavam e quase perdi o outro trecho da conversa.

— Não pode deixar que ele faça isso, mãe. Tem de impedir.

— Não depende de nós, querida.

 — Depende, sim. Se ele… se está pedindo para você participar — protestou Georgina.

Continuei segurando a maçaneta.

— Não acredito que esteja concordando com isso. E a sua religião? E tudo o que você fez? Para que o salvou da última vez?

A voz da Sra. Traynor estava propositalmente calma.

— Você não está sendo justa comigo.

— Você disse que ia levá-lo. O que…

— Você acha que, se eu me recusar a levá-lo, ele não vai pedir a outra pessoa?

— Mas levá-lo para a Dignitas? É errado. Sei que é difícil para ele, mas você e papai vão ficar arrasados. Sei disso. Pense em como você ia ficar! Pense nas notícias nos jornais! O seu trabalho! A reputação de vocês dois! Ele sabe disso. Só de pedir já é egoísta. Como ele se atreve? Como pode fazer isso? Como você pode? — Ela soluçou de novo.

— George…

— Não me olhe assim. Eu me preocupo com ele, mamãe. É meu irmão e eu o amo. Mas não posso aguentar. Não aguento nem pensar no assunto. Ele está errado em pedir, e você está errada em concordar. E não é só a própria vida que ele vai destruir levando isso adiante.

Recuei da janela. O sangue pulsava tão alto nos meus ouvidos que quase não ouvi a resposta da Sra. Traynor.

— Seis meses, George. Ele prometeu me dar mais seis meses. Não quero que você toque mais nesse assunto, muito menos na frente de outra pessoa. E temos… — Ela respirou fundo. — Temos de rezar muito para que, nesses seis meses, aconteça algo que o faça mudar de ideia.


Capítulo 8 

Camilla


Nunca tive a intenção de ajudar na morte do meu filho.

Até mesmo ler estas palavras parece estranho — algo como o que se lê em um tabloide ou naquelas revistas horríveis que a faxineira carrega na bolsa, repletas de mulheres cujas filhas fugiram com companheiros desonestos, histórias de incríveis perdas de peso e bebês de duas cabeças.

Eu não era o tipo de pessoa com quem essas coisas aconteciam. Pelo menos, pensava que não era. Minha vida era razoavelmente estruturada — do tipo comum, pelos padrões modernos. Estava casada havia quase trinta e sete anos, criara dois filhos, mantivera minha carreira, ajudara na escola, na Associação de Pais e Professores e saíra de cena quando os filhos não precisavam mais de mim.

Era juíza havia quase onze anos. Vi toda a vida humana passar pelo meu tribunal: os perdidos sem esperança, que não conseguiam se organizar nem para chegar na hora à audiência; os transgressores reincidentes; os jovens mal-encarados, raivosos, e as mães exaustas e endividadas. É um pouco difícil se manter calma e compreensiva vendo os mesmos rostos e os mesmos erros se repetirem. Às vezes, eu podia escutar a impaciência em meu tom de voz. Podia ser estranhamente desanimadora a completa recusa do ser humano em ao menos tentar agir de maneira responsável.

E nossa pequena cidade, apesar da beleza do castelo, dos diversos prédios tombados como patrimônio histórico e de nossas pitorescas estradas rurais, não está imune a tudo isso. Nossas praças construídas na época da Regência eram ocupadas por adolescentes alcoolizados, nossos chalés com teto de palha abafavam o barulho dos maridos batendo em suas esposas e seus filhos. Às vezes, eu me sentia como o rei Canuto, fazendo inúteis pronunciamentos diante da maré de caos e devastação. Mas gostava do meu trabalho. Eu trabalhava porque acreditava na ordem, em um código moral. Acredito que existe certo e errado, por mais fora de moda que o conceito possa parecer.

Consegui superar os piores momentos por causa do meu jardim. À medida que as crianças foram crescendo, a jardinagem se transformou um pouco em minha obsessão. Eu poderia dizer o nome científico, em latim, de quase todas as plantas que alguém me mostrasse. O engraçado é que nem tive aulas de latim na escola — frequentei uma pequena escola pública para meninas cujo foco era aprender a cozinhar e a bordar, coisas que poderiam nos ajudar a ser boas esposas —, mas acontece que o nome científico dessas plantas gruda na cabeça. Eu só precisava escutá-los uma única vez para me lembrar deles para sempre: Helleborus niger, Eremurusstenophyllus, Athyrium niponicum. Consigo pronunciar com uma fluência que nunca imaginei.

Dizem que só é possível se admirar um jardim depois de certa idade, e acho que existe alguma verdade nisso. Provavelmente tem algo a ver com o grande ciclo da vida. Parece que há algo de miraculoso em ver o inexorável otimismo de um novo broto após a desolação do inverno, uma espécie de alegria na diversidade a cada ano, a forma como a natureza escolhe mostrar diferentes partes do jardim. Houve momentos — quando meu casamento ficou mais populoso do que eu tinha imaginado — em que o jardim foi meu refúgio, momentos em que foi uma alegria.

Mas houve momentos também em que, sinceramente, ele foi uma dor. Não existe maior desapontamento do que criar um novo canteiro apenas para vê-lo não florir, ou ver uma fileira de lindos alliums destruídos durante a noite por algum motivo qualquer. Mas mesmo quando eu reclamava a respeito do tempo, do esforço que me exigia cuidar do jardim, do modo como minhas juntas protestavam quando eu passava uma tarde arrancando ervas daninhas ou de como minhas unhas nunca pareciam estar bem limpas, mesmo assim eu adorava aquilo. Adorava os prazeres sensoriais de estar ao ar livre, o cheiro, a sensação da terra sob meus dedos, a satisfação de ver coisas vivas, brilhando, cativada por sua própria beleza fugaz.

Depois do acidente de Will, abandonei a jardinagem por um ano. Não foi só por causa da falta de tempo, embora fossem infindáveis as horas passadas no hospital ou gastas indo e vindo de carro e nas reuniões — ah, meu Deus, as reuniões. Tirei seis meses de licença no trabalho e, mesmo assim, não foi suficiente.

É que, de repente, não vi mais sentido naquilo. Paguei um jardineiro para manter o jardim arrumado, e acho que não dei mais que uma olhada superficial nele durante quase um ano inteiro.

Foi só quando trouxemos Will de volta para casa, depois que o anexo foi adaptado e arrumado, que encontrei algum sentido em tornar o jardim bonito outra vez. Precisava dar ao meu filho um lugar para onde olhar. Precisava dizer a ele, silenciosamente, que as coisas poderiam mudar, crescer ou fenecer, mas que a vida continuaria. Que todos nós éramos parte de um grande ciclo, algum tipo de arranjo cuja finalidade só Deus poderia entender. Eu não podia dizer isso a ele, é claro — Will e eu nunca fomos muito bons em conversar —, mas eu queria mostrar. Uma promessa tácita, se preferir, de que existe algo maior, um futuro melhor.

* * *

Steven estava mexendo na lareira acesa. Ele manejava com destreza, usando um atiçador, a lenha parcialmente queimada, fazendo com que faíscas reluzentes subissem pela chaminé, e então colocou uma nova acha no meio. Recuou, como sempre fazia, olhando com calma satisfação à medida que a lenha pegava fogo, e limpou as mãos nas calças de veludo. Virou-se quando entrei na sala. Estendi-lhe um copo.

— Obrigado. George vai descer?

— Pelo jeito, não.

— O que ela está fazendo?

— Assistindo a TV lá em cima. Não quer companhia. Eu perguntei.

— Ela vem. Deve estar com jet lag.

— Espero que sim, Steven. No momento, ela não está muito feliz conosco.

Ficamos em silêncio, observando o fogo. Ao nosso redor, a sala estava escura e parada, as vidraças da janela sacudiam-se delicadamente ao serem golpeadas pelo vento e pela chuva.

— Tempo horrível esta noite.

— É.

A cadela entrou em silêncio na sala e, com um suspiro, deixou-se cair pesadamente na frente da lareira. De sua posição deitada, lançou um olhar de adoração para nós.

— O que você acha? — disse ele. — Dessa história do corte de cabelo?

— Não sei. Gostaria de achar que é um bom sinal.

— Essa Louisa é uma figura, não?

Vi o modo como meu marido sorria para si mesmo. Ela também não, peguei-me pensando, e então pus fim a esse pensamento.

— É. É, acho que é, sim.

— Acha que ela é a pessoa certa?

Dei um golinho na bebida antes de responder. Dois dedos de gim, uma rodela de limão e bastante tônica.

— Quem sabe? — falei. — Acho que eu já não tenho a menor ideia do que é certo ou errado.

— Ele gosta dela. Tenho certeza de que gosta dela. Outra noite, conversávamos enquanto assistíamos ao noticiário e ele falou dela duas vezes. Nunca tinha feito isso antes.

— É. Bom. Eu não ficaria tão esperançosa.

— Precisa fazer isso?

Steven virou o rosto para mim. Eu podia vê-lo me estudar, talvez notando as novas rugas em volta dos meus olhos, o modo como, nesses dias, minha boca se transformara numa linha fina devido à preocupação. Ele olhou para a pequena cruz dourada que agora estava sempre no meu pescoço. Eu não gostava quando ele me olhava daquele jeito. Tinha sempre a impressão de que estava me comparando com outra pessoa.

— Só estou sendo realista.

— Soa… soa como se você já estivesse esperando que isso aconteça.

— Conheço meu filho.

— Nosso filho.

— Sim, nosso. — Mais meu, peguei-me pensando. Você nunca esteve presente para ele de verdade. Não em termos emocionais. Você era apenas a ausência a quem ele tentava sempre impressionar.

— Ele vai mudar de ideia — disse Steven. — Ainda tem muito chão pela frente.

Ficamos ali. Dei um bom gole na bebida, o gelo frio contrastava com o calor que vinha da lareira.

— Fico pensando… — falei, olhando para dentro da lareira. — Ainda acho que não entendi bem.

Meu marido continuava a me observar. Eu podia sentir seu olhar, mas não conseguia encará-lo. Talvez ele pudesse estender a mão para mim. Mas acho que, provavelmente, tínhamos ido longe demais para isso.

Ele deu um gole na bebida.

— Você só pode fazer o que está ao seu alcance, querida.

— Sei bem disso. Mas não é o suficiente, certo?

Ele se voltou de novo para a lareira, mexeu desnecessariamente a lenha com o atiçador até eu me virar e sair em silêncio da sala.

Exatamente como sabia que eu faria.

* * *

A primeira vez que Will me contou o que queria fazer, precisou repetir, pois eu tive certeza de que não tinha entendido bem. Fiquei calma quando compreendi o que ele estava me propondo, então falei que ele estava sendo ridículo e saí do quarto na mesma hora. É uma vantagem desleal ser capaz de se afastar de um homem numa cadeira de rodas. Há dois degraus entre o anexo e a casa principal e, sem a ajuda de Nathan, Will não pode transpô-los. Fechei a porta do anexo e fiquei no hall de entrada, com as palavras calmas de meu filho ainda tilintando nos meus ouvidos.

Acho que fiquei parada por uma meia hora.

Ele se recusou a desistir. Em se tratando de Will, ele sempre precisava ter a última palavra. Repetiu o pedido todas as vezes em que fui vê-lo, até que a cada dia se tornava quase insuportável para mim ir até lá. Não quero viver assim, mãe. Não é a vida que eu quis. Não há perspectiva de recuperação, então, é bastante razoável pedir para acabar com isso da maneira como eu ache adequada. Ouvi-o e pude imaginar muito bem como ele deveria ter sido nas reuniões de negócios, na profissão que o tornou rico e arrogante. No fim das contas, ele era um homem que costumava ser obedecido. Não podia suportar o fato de que, de certa maneira, eu tivesse o poder de ditar seu futuro, que tivesse, de algum modo, me transformando de novo na mamãe.

Ele dedicou toda a sua energia em me convencer. Não é porque minha religião proíba, embora fosse terrível a perspectiva de que Will acabasse enviado para o Inferno devido a seu próprio desespero. (Prefiro acreditar que Deus, um Deus benevolente, pudesse compreender nossos sofrimentos e perdoar nossos pecados.)

É só que o que não se pode compreender a respeito da maternidade, até que se tenha um filho, é que não é um adulto — o deselegante, barbado, fedorento, filho teimoso — que a mãe vê diante de si, com seus recibos de estacionamento, seus sapatos não engraxados e sua complicada vida sentimental. A mãe enxerga todas as pessoas que o filho já foi ao longo da vida reunidas em uma só.

Olhei para Will e enxerguei o bebê que segurei no colo, chorosamente encantada, incapaz de acreditar que eu havia gerado um outro ser humano. Vi a criança pequena, esticando a mão para mim, o menino em idade escolar chorando de raiva porque outra criança zombou dele. Enxerguei as vulnerabilidades, o amor, a história. Era isso que ele estava me pedindo para extinguir — a criança e, ao mesmo tempo, o homem — todo aquele amor, toda aquela história.

E então, num dia vinte e dois de janeiro, um dia em que eu estava presa no tribunal por causa de uma quantidade enorme de pequenos ladrões e motoristas sem seguro contra acidentes; de chorosos e irritados ex-casais, Steven entrou no anexo e encontrou nosso filho quase inconsciente, a cabeça caída no braço da cadeira, um mar de sangue escuro e pegajoso ao redor de sua cadeira de rodas. Ele tinha encontrado um prego enferrujado de menos de dois centímetros, que emergia de alguma parte mal-acabada do armário e, pressionando o pulso contra aquele prego, movimentou sua cadeira para cima e para baixo até a pele ser cortada em tiras. Até hoje não consigo imaginar a determinação que o fez continuar, mesmo que ele tenha ficado meio delirante por causa da dor. Os médicos disseram que, se demorássemos mais vinte minutos, ele teria morrido.

Isso não foi, eles comentaram em um requintado eufemismo, um pedido de ajuda.

Quando me ligaram do hospital para dizer que Will sobreviveria, saí para o meu jardim e me enfureci. Fiquei furiosa com Deus, com a natureza, com qualquer destino que tivesse levado minha família àquele ponto. Hoje, olhando para trás, imagino que devo ter parecido completamente louca. Naquela tarde fria, fiquei no jardim, arremessei meu grande copo de conhaque a seis metros, nos Euonymus compactus, e gritei de tal maneira que minha voz rompeu o ar, ultrapassou os muros do castelo e ecoou na distância. Eu estava tão furiosa porque tudo ao meu redor podia se mexer e se curvar e crescer e se reproduzir, e meu filho — meu filho cheio de vida, carismático e lindo — era apenas aquela coisa. Imóvel, murcho, ensanguentado, sofrendo. A beleza do mundo parecia uma obscenidade. Gritei e gritei e jurei — com palavras que até então não sabia que conhecia — até Steven sair e parar junto a mim, sua mão repousando no meu ombro, esperando até que pudesse ter certeza de que eu ficaria novamente em silêncio.

Ele não entendeu, sabe. Ainda não tinha entendido. Que Will tentaria outra vez. Que nossas vidas seriam esgotadas numa vigilância constante, esperando pela próxima vez, aguardando para ver que horror ele poderia se infligir. Teríamos de ver o mundo pelos olhos dele — os venenos em potencial, os objetos cortantes, a criatividade com a qual ele poderia terminar o serviço que aquele maldito motoqueiro tinha começado. Nossas vidas tinham de encolher para caber no potencial daquele primeiro ato. E ele tinha uma vantagem — não tinha mais nada em que pensar.

Duas semanas depois, eu disse a Will:

— Está bem.

Claro que eu disse.

O que mais eu poderia fazer?


 Capítulo 9 



Não dormi aquela noite. Fiquei deitada no meu quarto olhando o teto e reconstruindo cuidadosamente os dois últimos meses com base no que eu agora sabia. Foi como se tudo tivesse sido modicado, fragmentado e rearrumado de outra maneira, em um padrão que eu mal reconhecia. 

Senti-me enganada, a estúpida subordinada que não sabia o que estava acontecendo. Senti que eles deviam ter rido escondido de minhas tentativas de oferecer legumes para Will comer, ou de cortar seus cabelos — pequenas coisas para fazê-lo se sentir melhor. Qual tinha sido o sentido de tudo isso, afinal? 

Repassei diversas vezes a conversa que ouvi, tentando interpretá-la de algum outro jeito, tentando convencer a mim mesma de que eu havia entendido mal o que eles disseram. Mas a Dignitas não era exatamente o lugar a que se ia para tirar umas férias. Eu não conseguia acreditar que Camilla Traynor pudesse pensar em fazer aquilo com o lho. Sim, eu a achava fria, e sim, esquisita perto dele. Era difícil imaginá-la fazendo carinho em Will, como minha mãe fazia conosco (de maneira firme, jovial) até nos afastarmos nos retorcendo, pedindo para ela nos soltar. Para ser sincera, eu achava que era assim que a classe alta lidava com os lhos. Anal, eu tinha acabado de ler o livro de Will, Love in a Cold Climate. Mas, ativamente, concordar em colaborar na morte do próprio filho? 

Pensando em retrospecto, o comportamento dela parecia ainda mais frio, suas ações imbuídas de alguma intenção funesta. Eu estava furiosa com ela, e com Will. Furiosa com eles por me fazerem acreditar numa fachada. Furiosa por todas as vezes em que fiquei pensando em como poderia melhorar as coisas para ele, fazê-lo se sentir confortável ou feliz. Quando não cava furiosa, eu cava triste. Eu podia me lembrar da sutil interrupção na voz dela ao tentar confortar Georgina, e me senti muito triste por ela. Ela estava, eu sabia, numa posição insuportável. 

Mas, acima de tudo, eu me senti tomada de horror. Estava assustada com o que agora sabia. Como alguém pode viver com a consciência de que está apenas deixando os dias correrem até sua própria morte? Como poderia esse homem, cuja pele, hoje de manhã, eu tinha sentido sob meus dedos — cálida e viva —, querer simplesmente acabar consigo mesmo? Como poderia ser que, com o consentimento de todos, dali a seis meses, essa mesma pele estaria se decompondo embaixo da terra?

Eu não podia contar para ninguém. E isso era quase o pior de tudo. Eu agora era cúmplice do segredo dos Traynor. Indisposta e indiferente, liguei para Patrick para avisar que não estava bem e ia ficar em casa. Tudo certo, ele estava numa corrida de dez quilômetros, disse. Provavelmente, não teria terminado suas atividades no clube de atletismo antes das nove da noite. Nós nos veríamos no sábado. Ele pareceu distraído, como se já estivesse em outro lugar, mais além, em alguma pista de corrida mítica. 

Eu não quis jantar. Fiquei na cama até meus pensamentos escurecerem e se solidificarem ao ponto de eu não aguentar mais o peso deles, e, às oito e meia, desci e fiquei sentada silenciosamente vendo TV, empoleirada ao lado de vovô, que era a única pessoa na nossa família que com certeza não iria me perguntar nada. Ele estava sentado em sua poltrona predileta e olhava fixamente para a tela com intensos olhos vidrados. Eu nunca tinha certeza se ele assistia ao programa ou se sua mente estava em algo completamente diferente. 

— Tem certeza que não quer que eu faça nada para você, querida? — mamãe apareceu ao meu lado com uma xícara de chá. Para nossa família, não havia nada que não pudesse ser resolvido com uma xícara de chá. 

— Não. Estou sem fome, obrigada. 

Vi a forma como ela olhou para papai. Eu sabia que, depois, haveria murmúrios secretos sobre como os Traynor estavam me fazendo trabalhar demais, e como o estresse de cuidar daquele inválido era muito pesado. Eu sabia que eles se culpariam por me incentivarem a aceitar o emprego. 

Eu precisava deixá-los pensar que tinham razão.

* * *

Paradoxalmente, no dia seguinte Will estava de bom humor — surpreendentemente falante, cheio de opiniões, provocador. Ele falou mais do que no dia anterior. Foi como se quisesse discutir comigo, e se desapontou quando eu não entrei no jogo. 

— Quando você vai terminar o trabalho? 

Eu estava limpando a sala. Olhei, batendo as almofadas do sofá. 

— Que trabalho? 

— Meu cabelo. Está pela metade. Pareço um daqueles órfãos vitorianos. Ou um londrino idiota. — Ele virou a cabeça para que eu pudesse ver melhor minha obra. — A menos que essa seja uma de suas demonstrações de estilo alternativo. 

— Quer que eu continue a cortar? 

— Bom, achei que isso a deixava feliz. E seria ótimo não parecer que vivo num hospício.

 Peguei uma toalha e a tesoura em silêncio.

— Nathan está definitivamente mais feliz agora que pareço um sujeito normal — disse ele. — Embora ele tenha observado que, agora que minha cara voltou ao que era, eu precisarei fazer a barba todos os dias. 

— Ah — exclamei. 

— Você se importa? Nos finais de semana, aguentarei uma barbinha rala. 

Eu não conseguia falar com ele. Achei difícil até mesmo olhá-lo nos olhos. Era como descobrir que seu namorado foi infiel. Eu me sentia, estranhamente, como se Will tivesse me traído. 

— Clark? 

— Hum? 

— Você está tendo outro dia enervantemente calado. O que houve com aquela “falação que chegava a ser vagamente irritante”? 

— Desculpe-me — falei. 

— É o Corredor de novo? O que ele fez agora? Ele não saiu correndo do relacionamento, saiu? 

— Não. 

Peguei uma macia mecha de cabelos de Will entre o dedo indicador e o médio e deslizei as lâminas da tesoura por ela para aparar o que cara exposto acima deles. Os cabelos ficaram na minha mão. Como eles fariam? Dariam a ele uma injeção letal? Seria com um medicamento? Ou será que apenas largavam a pessoa num quarto com uma porção de navalhas? 

— Você parece cansada. Eu não ia dizer quando você chegou, mas, droga, você está com uma cara péssima. 

— Ah. 

Como eles acabavam com a vida de uma pessoa incapaz até de mexer braços e pernas? Peguei a mim mesma olhando para os pulsos de Will, que estavam sempre cobertos por mangas compridas. Durante semanas, achei que era por que ele sentia mais frio do que nós. Outra mentira.

 — Clark? 

— Sim?

 Fiquei feliz por estar atrás dele. Não queria que ele visse a minha cara. 

Will ficou indeciso. A parte da nuca, que cava coberta pelos cabelos, estava ainda mais clara do que o restante da pele. Parecia macia, branca e estranhamente vulnerável.

 — Olhe, me desculpe por minha irmã. Ela estava... estava muito nervosa, mas isso não lhe dá o direito de ser agressiva. Às vezes ela é muito direta. Não percebe que tira as pessoas do sério. — Fez uma pausa. — É por isso que ela gosta de morar na Austrália, eu acho. 

— Você quer dizer que lá as pessoas dizem a verdade umas para as outras?

— O quê? 

— Nada. Levante a cabeça, por favor. 

Cortei seu cabelo e penteei, trabalhando metodicamente ao redor de toda a cabeça até que cada o estivesse aparado e restasse um ralo montinho de cabelos em volta dos pés dele.

* * *

No final do dia, tive certeza do que eu faria. Enquanto Will assistia a TV com o pai, aproveitei para pegar uma folha de papel A4 na impressora e uma caneta no pote que cava na janela da cozinha e escrevi o que queria dizer. Dobrei o papel, encontrei um envelope e deixei-o sobre a mesa da cozinha, destinado à mãe dele. 

Quando saí, à noite, Will e o pai conversavam. Na verdade, Will estava rindo. Parei no corredor com a bolsa pendurada no ombro, escutando. Por que ele ria? O que poderia lhe provocar alegria, uma vez que faltavam poucas semanas para ele se matar? 

— Terminei aqui — gritei porta adentro e comecei a andar. 

— Ei, Clark... — Will começou a falar, mas eu já tinha fechado a porta atrás de mim. 

Passei a curta viagem de ônibus tentando pensar no que diria aos meus pais. Eles cariam furiosos por eu largar um emprego que viam como perfeitamente adequado e bem pago. Após o choque inicial, minha mãe pareceria sofrida e me defenderia, insinuando que tinha sido demais para mim. Meu pai certamente perguntaria por que eu não era mais parecida com minha irmã. Ele sempre fazia isso, mesmo que não tenha sido eu a estragar a vida cando grávida, nem a depender do restante da família para ter dinheiro e cuidar do lho. Não era permitido dizer nada assim na nossa casa porque, segundo minha mãe, era como dizer que Thomas não era uma bênção. Todos os bebês eram bênçãos de Deus, mesmo aqueles que diziam veado um pouco demais e cuja presença significava que metade do potencial de ganhar dinheiro de nossa família não podia de fato sair e arrumar um bom emprego.

 Eu não conseguiria dizer a verdade para eles. Sabia que não devia nada a Will ou a sua família, mas não ia impor o olhar curioso da vizinhança sobre eles. 

Todos esses pensamentos reviravam na minha cabeça quando saí do ônibus e desci a colina. E então cheguei na esquina da nossa rua e escutei o berro, senti a sutil vibração no ar, e tudo em que pensava foi brevemente esquecido. 

Uma pequena multidão tinha se juntado em volta da nossa casa. Apressei o passo, com medo de que tivesse acontecido alguma coisa, e vi meus pais no vestíbulo, espiando, e notei que não era na nossa casa, anal de contas. Era só a mais recente de uma longa série de pequenas batalhas que caracterizavam o casamento de nossos vizinhos.

Que Richard Grisham não era o mais el dos maridos era algo bastante sabido em nossa rua. Mas, a julgar pela cena no jardim, devia ter sido a esposa dele a descobrir isso. 

— Você deve ter achado que eu era uma droga de uma idiota. Ela estava com a sua camiseta! Aquela que eu fiz para o seu aniversário! 

— Querida... Dympna... não é o que você está pensando. 

— Fui comprar os seus malditos ovos escoceses! E lá estava ela, usando a sua camiseta! Cheia de si! E eu nem gosto de ovos escoceses! 

Diminuí o passo, abrindo caminho em meio à pequena multidão até conseguir alcançar nosso portão, vendo quando Richard se abaixou para evitar ser atingido por um aparelho de DVD. A seguir, veio um par de sapatos.

 — Há quanto tempo eles estão nessa? 

Minha mãe, com o avental cuidadosamente amarrado à cintura, descruzou os braços e deu uma olhada no relógio. 

— Há uns bons quarenta e cinco minutos. Bernard, você diria que já tem uns bons quarenta e cinco minutos?

 — Depende se você contar a partir de quando ela jogou as roupas ou de quando ele voltou e as encontrou. 

— Considero quando ele chegou. 

Papai avaliou. 

— Então faz realmente quase meia hora. Ela ficou um bom tempo jogando coisas pela janela nos primeiros quinze minutos. 

— Seu pai disse que, se ela realmente expulsar Richard de casa, vai fazer uma oferta de compra pela Black and Decker dele. 

A multidão tinha aumentado e Dympna Grisham não mostrava sinais de que desistiria. Pelo contrário, parecia encorajada pelo crescente tamanho de sua audiência.

 — Pode dar para ela seus livros imundos — gritou, jogando um maço de revistas pela janela. 

Isso promoveu uma pequena salva de palmas na plateia. 

— Veja se ela gosta que você que metade da tarde de domingo sentado no banheiro com isso, ok? — Ela sumiu dentro de casa e então reapareceu na janela, esvaziando o conteúdo de um cesto de roupas sujas em cima do que já estava no gramado. — E suas imundas cuecas. Vamos ver se ela acha você um... como era?... supergaranhão, quando estiver lavando essas coisas para você todos os dias! 

Richard recolhia inutilmente braçadas de suas roupas à medida que aterrissavam na grama. Ele estava gritando alguma coisa para o alto, na direção da janela, mas, com o barulho e os apupos, era difícil entender. Como se por ora admitisse a derrota, ele abriu caminho pela multidão, destrancou o carro, jogou uma braçada de seus pertences no banco de trás e bateu a porta para fechá-la. Estranhamente, enquanto sua coleção de CDs e seus video games causaram muito interesse, ninguém moveu uma palha pela roupa suja. 

Crash. Houve uma pequena agitação quando o aparelho de som encontrou o chão. 

Ele olhou para cima, incrédulo. 

— Sua vadia maluca!

— Você anda dando amassos naquele monstro vesgo e cheio de doenças que trabalha na garagem e eu é que sou a vadia maluca?

 Mamãe virou-se para papai: 

— Você gostaria de uma xícara de chá, Bernard? Acho que está cando um pouco frio. 

Meu pai não tirou os olhos da porta da vizinha. 

— Seria ótimo, querida. Obrigado. 

Foi quando mamãe entrou em casa que reparei no carro. Foi tão inesperado que a princípio não o reconheci — a Mercedes azul-marinho da Sra. T raynor, discreta e de suspensão baixa. Ela abriu a porta, observando a cena na calçada, e hesitou por um instante antes de sair do carro. Ela cou parada, encarando as várias casas, talvez conferindo os números. E então, me viu.

 Saí do vestíbulo e percorri o caminho para carros antes que papai perguntasse aonde eu ia. A Sra. T raynor permaneceu ao lado da multidão, olhando para o caos como Maria Antonieta olharia para um bando de camponeses revoltados. 

— Briga doméstica — expliquei. 

Ela desviou o olhar, como se estivesse quase constrangida por ter sido pega observando a cena. 

— Sei. 

— Para os padrões deles, é completamente construtivo. Quase uma terapia de casal. 

O elegante tailleur de lã que ela usava, as pérolas e o cabelo de aparência chique bastavam para destacá-la na nossa rua, no meio das calças de moletom e dos tecidos baratos e de cores berrantes das lojas de departamento. Ela tinha uma aparência rígida, pior do que a daquela manhã em que chegou em casa e me encontrou dormindo no quarto de Will. Registrei em alguma parte distante da minha mente que eu não sentiria falta de Camilla Traynor. 

— Estava pensando se você e eu poderíamos ter uma conversinha. — Ela precisou erguer a voz para se fazer ouvir acima da agitação. 

A Sra. Grisham agora jogava pela janela os vinhos nos do marido. Cada garrafa que explodia no chão era saudada com gritos de deleite e mais um sincero acesso de raiva e apelos do Sr. Grisham. Um rio de vinho tinto escorria por entre os pés da multidão, para dentro do bueiro.

 Lancei um olhar para aquela confusão, e depois virei para trás, para a nossa casa. Não conseguia pensar em levar a Sra. Traynor para a nossa sala da frente, com aquela confusão de trens de brinquedo, o vovô roncando silenciosamente diante da TV, mamãe borrifando essências para disfarçar o cheiro das meias de papai e Thomas aparecendo para mumurar veado para as visitas.

 — Hum... não é uma boa hora.

 — Talvez possamos conversar no meu carro? Olhe, só cinco minutos, Louisa. Certamente tem esse tempo a nos oferecer. 

Alguns vizinhos olharam na minha direção quando entrei no carro. Tive sorte de os Grisham serem a grande novidade do dia, caso contrário, o tópico das conversas teria sido eu. Na nossa rua, se você entra num carro de luxo significa que conquistou um jogador de futebol ou está sendo preso por policiais à paisana.

 As portas do carro se fecharam com um baque surdo e pesado e, de repente, fez-se silêncio. O carro tinha cheiro de couro e não havia nada em seu interior além de mim e da Sra. Traynor. Sem papel de bala, lama, brinquedos perdidos ou coisas perfumadas penduradas para disfarçar o cheiro da embalagem de leite que tinha se derramado lá dentro três meses antes. 

— Pensei que você e Will se dessem bem. — Ela falou como se estivesse se dirigindo a alguém bem à sua frente. Quando eu não disse nada, ela perguntou: — É problema de dinheiro? 

— Não. 

— Precisa de um intervalo de almoço maior? Sei que é um pouco curto. Posso perguntar a Nathan se ele... 

— Não é por causa do horário. Nem do dinheiro.

 — Então... 

— Eu realmente não quero... 

— Olhe, você não pode pedir demissão sem aviso prévio e esperar que eu nem ao menos pergunte o que aconteceu. 

Respirei fundo. 

— Ouvi a senhora. A senhora e sua filha. Na noite passada. E não quero... Não quero participar disso. 

— Ah.

 Ficamos em silêncio. O Sr. Grisham agora tentava derrubar a porta da frente para entrar e a Sra. Grisham estava ocupada em arremessar pela janela e em direção à cabeça dele qualquer coisa que localizasse. A escolha dos projéteis (rolo de papel higiênico, caixas de absorvente, escova de vaso, frascos de xampu) sugeria que ela estava no banheiro. 

— Por favor, não vá embora — disse a Sra. Traynor, em voz baixa. — Will está à vontade com você. Mais do que tem estado em muito tempo. Eu... seria muito difícil nós conseguirmos isso com outra pessoa. 

— Mas vocês... vocês vão levá-lo para aquele lugar onde as pessoas se matam.
Dignitas.

 — Não. Vou fazer tudo o que puder para garantir que ele não faça isso. 

— Como o quê? Rezar? 

Ela me deu o que minha mãe teria chamado de um “olhar desaprovador”. 

— Você já deve ter percebido que, se Will decide se tornar inalcançável, há muito pouco que qualquer pessoa possa fazer em relação a isso. 

— Já entendi tudo isso — falei. — Estou lá apenas para garantir que ele não trapaceie e se mate antes que os seis meses cheguem ao fim. É isso, não é? 

— Não. Não é isso. 

— É por isso que a senhora não ligou para minhas qualificações para o trabalho. 

— Achei você inteligente, alegre e diferente. Você não parecia uma enfermeira. Não se comportava... como nenhuma das outras. Pensei... pensei que pudesse animá-lo. E anima... você realmente o anima, Louisa. Vê-lo sem aquela barba horrorosa ontem... você parece ser uma das poucas pessoas que consegue chegar até ele. 

Roupas de cama saíram pela janela. Caíram emboladas, os lençóis se abriram rápida e graciosamente antes de atingirem o chão. Duas crianças pegaram um e correram pelo jardim com ele na cabeça. 

— Não acha que teria sido justo dizer que eu seria, na prática, a vigia de um suicida? 

O suspiro que Camilla Traynor deu soou como o de alguém obrigado a explicar algo educadamente para uma imbecil. Fiquei pensando se ela tinha consciência de que tudo o que falava fazia os outros parecerem idiotas. Pensei que aquilo era uma coisa que ela havia cultivado realmente de maneira deliberada. Acho que eu jamais conseguiria fazer alguém se sentir inferior. 

— Podia ser assim na época em que nós nos conhecemos... mas tenho certeza que Will vai manter sua palavra. Ele me prometeu seis meses, e será isso o que terei. Precisamos desse tempo, Louisa. Precisamos desse tempo para que ele saiba que existe uma possibilidade. Eu esperava que isso plantasse nele a ideia de que existe uma vida que ele pode aproveitar, mesmo que não seja a vida que ele havia planejado.

 — Mas é tudo mentira. A senhora mentiu para mim e todos na sua família estão mentindo uns para os outros.

 Ela não parecia me ouvir. Virou-se para me olhar, puxando um talão de cheques da bolsa, a caneta já na mão.

 — Escute, o que você quer? Dobro o seu salário. Diga-me quanto quer.

 — Não quero o seu dinheiro. 

— Um carro. Alguns benefícios. Bônus... 

— Não... 

— Então... o que posso fazer para que você mude de ideia? 

— Sinto muito. Eu apenas não... 

Fiz menção de sair do carro. Sua mão disparou. E ficou ali, no meu braço, estranha e radioativa. Nós duas olhamos para a mão.

 — Você assinou um contrato, Srta. Clark — disse ela. — Você assinou um contrato em que prometeu trabalhar conosco por seis meses. Pelos meus cálculos, cumpriu apenas dois. Só estou solicitando que cumpra suas obrigações contratuais. 

Sua voz tinha se tornado áspera. Olhei para baixo, para a mão dela, e vi que tremia. 

Ela engoliu em seco. 

— Por favor.

 Meus pais estavam olhando da varanda. Eu podia vê-los, canecas de chá equilibradas em suas mãos, as únicas pessoas que não acompanhavam a cena na porta ao lado. Viraram-se, desajeitados, quando perceberam que eu os havia notado. Papai, eu reparei, usava os chinelos xadrez manchados de tinta. 

Abri a porta do carro.

 — Sra. Traynor, eu realmente não posso simplesmente me sentar e assistir... é muito estranho. Não quero fazer parte disso. 

— Apenas pense a respeito. Amanhã é Sexta-feira Santa; direi a Will que você tem um compromisso familiar, se precisa mesmo de tempo. Aproveite o m de semana prolongado para pensar. Mas, por favor. Volte. Volte e ajude-o. 

Entrei em casa sem olhar para trás. Sentei-me na sala de estar, olhando para a TV enquanto meus pais me seguiam, trocando olhares e fingindo que não estavam me examinando. 

Passaram-se quase onze minutos até que eu finalmente ouvi o motor do carro da Sra. Traynor ser ligado e sair.

* * *

Nem cinco minutos depois de chegar em casa, minha irmã veio me confrontar, pisando duro na escada e escancarando a porta do meu quarto.

 — Sim, pode entrar — falei, deitada na cama, com as pernas apoiadas na parede, olhando o teto. 

Eu estava vestindo meia-calça e short com lantejoulas azuis, que se embolava sem qualquer charme nas minhas coxas. 

Katrina ficou à porta. 

— É verdade? 

— Que Dympna Grisham nalmente expulsou aquele marido traidor, imprestável, mulherengo e... 

— Não banque a espertinha. Sobre o seu trabalho. 

Percorri com o dedão do pé o desenho do papel de parede. 

— Sim, entreguei a carta de demissão. Sim, eu sei que mamãe e papai não estão felizes com isso. Sim, sim, sim para qualquer coisa que você deseje jogar em cima de mim. 

Ela fechou a porta com cuidado atrás de si, então se sentou pesadamente na ponta da cama e praguejou vigorosamente: 

— Não acredito nisso. 

Empurrou minhas pernas pela parede até que eu escorregasse, de modo que elas quase caíram sobre a cama. 

Eu me endireitei. 

— Ai. 

Seu rosto estava afogueado. 

— Não acredito. Mamãe está lá em baixo devastada. Papai finge que não, mas também está. Como eles vão se virar com o dinheiro? Você sabe que papai já está entrando em pânico com o emprego. Por que jogar fora um trabalho perfeitamente ótimo? 

— Não venha me repreender, Treen. 

— Bom, alguém tem que fazer isso! Você não vai conseguir um salário como esse em lugar nenhum. E como vai ficar o seu currículo?

 — Ah, não finja que isso é sobre qualquer outra coisa que não seja você e seus interesses.

 — O quê? 

— Você não liga para o que eu faço, desde que possa ir lá e ressuscitar a sua carreira promissora. Você só precisa que eu seja o arrimo da família e pague a bendita creche. O resto que se dane. 

Sei que fui mesquinha e vil, mas não pude evitar. Anal, foi a situação da minha irmã que nos levou àquela confusão. Anos de ressentimento começaram a vir à tona. 

— Todos nós temos de aguentar empregos que odiamos para que a pequena Katrina possa realizar suas malditas ambições.

 — Isso não tem nada a ver comigo. 

— Não? 

— Não, tem a ver com você sair do único emprego decente que alguém lhe ofereceu em anos. 

— Você não sabe nada sobre o meu emprego, está bem? 

— Sei que paga muito mais que o salário mínimo. E é só o que preciso saber sobre o seu emprego. 

— Nem tudo na vida gira em torno de dinheiro, sabia?!

 — Ah, é? Então desça e diga isso para mamãe e papai. 

— Não ouse me dar um sermão sobre dinheiro quando há anos não contribui com um tostão nesta casa. 

— Você sabe que não posso contribuir com muito por causa de Thomas.

Comecei a empurrar minha irmã porta afora. Não me lembro da última vez em que encostei a mão nela, mas agora tudo o que eu queria era bater em alguém e não sabia do que seria capaz se ela continuasse na minha frente.

 — Apenas dê o fora, Treen. Certo? Apenas dê o fora e me deixe sozinha. 

Bati a porta na cara dela. E quando finalmente ouvi-a descer devagar a escada, preferi não pensar no que ela poderia dizer aos meus pais, em como todos poderiam considerar essa como mais uma prova da minha catastrófica incapacidade de fazer algo útil. Preferi não pensar em Syed no Centro de Trabalho e em como eu poderia explicar meus motivos para largar o mais bem pago emprego doméstico. Preferi não pensar na fábrica de frangos e em como, em algum lugar, bem lá no fundo, provavelmente havia um conjunto de avental plástico e touca higiênica com meu nome escrito. 

Deitei-me na cama e pensei em Will. Pensei em sua raiva e em sua tristeza. Pensei no que a mãe dele tinha dito: que eu era uma das únicas pessoas que conseguiu alcançá-lo. Pensei nele se esforçando para não rir com a Canção Molahonkey numa noite em que a neve caía dourada do outro lado da janela. Pensei na pele cálida e nas mãos e nos cabelos macios de alguém vivo, de alguém bem mais inteligente e engraçado do que eu jamais poderia ser e que, apesar disso, não via nada melhor no futuro do que se matar. E enfim, com a cabeça pressionada contra o travesseiro, chorei porque minha vida de repente pareceu muito mais difícil de entender e muito mais complicada do que jamais havia imaginado, e desejei poder voltar até os dias em que minha maior preocupação era se Frank e eu tínhamos encomendado bolinhos Chelsea suficientes. 

Alguém bateu à porta. 

Assoei o nariz. 

— Dê o fora, Katrina. 

— Desculpe. 

Encarei a porta. 

A voz dela estava abafada como se a boca estivesse encostada no buraco da fechadura.

 — Trouxe vinho. Escute, deixe eu entrar, pelo amor de Deus, ou a mamãe vai me ouvir. Tenho duas canecas de Bob, o Construtor, escondidas na minha saia, e você sabe como ela fica quando bebemos aqui em cima. 

Saí da cama e abri a porta. 

Ela olhou meu rosto manchado de lágrimas e fechou rápido a porta atrás de si.

 — Certo — disse, abrindo a garrafa e servindo uma caneca de vinho —, o que realmente aconteceu? 

Olhei firme para minha irmã. 

— Você não pode contar a ninguém o que eu vou lhe dizer. Nem ao papai. E, principalmente, à mamãe. 

Então, contei tudo.

Tinha de contar para alguém.

* * *

Eu não gostava de muitas coisas em relação à minha irmã. Há alguns anos, poderia apresentar listas inteiras que eu escrevera discorrendo sobre cada um dos tópicos. Eu a detestava pelo fato de ter cabelos grossos e lisos enquanto o meu cava quebradiço se crescesse além dos ombros. Eu a detestava porque nunca podia contar uma coisa que ela já não soubesse. Eu odiava o fato de meus professores, durante toda a minha vida escolar, fazerem questão de me dizer, em voz baixa, como ela era inteligente, como se seu brilho não significasse que, por definição, eu tinha de viver sempre na sombra. Eu a detestava porque, aos vinte e seis anos, eu precisava ocupar um quartinho numa casa geminada só para ela poder ficar com seu lho bastardo no quarto maior. Mas, de vez em quando, eu realmente gostava muito que ela fosse minha irmã.

 Pois Katrina não gritou de horror. Não pareceu chocada ou insistiu para que eu avisasse a mamãe e papai. E não disse sequer uma vez que foi um erro eu pedir demissão. 

Deu uma grande golada na bebida e exclamou:

 — Meu Deus. 

— Exatamente. 

— É legal, de qualquer jeito. Eles não podem impedir o filho de se matar. 

— Eu sei. 

— Merda. Não consigo nem pensar nisso. 

Nós esvaziamos dois copos só enquanto eu contava o caso, e eu podia sentir o calor subindo por minhas bochechas. 

— Detesto pensar em deixá-lo. Mas não posso participar disso, Treen. Não posso. 

— Hum. 

Treen estava pensando. Minha irmã realmente tem uma “cara pensante”. Faz as pessoas pararem antes de dizerem alguma coisa para ela. Papai diz que minha “cara pensante” dá a impressão de que eu quero ir ao banheiro. 

— Não sei o que fazer — confessei. 

Ela me olhou, o rosto subitamente iluminado. 

— É simples. 

— Simples. 

Serviu mais um copo para cada uma de nós. 

— Opa. Pelo jeito, já terminamos com essa garrafa. Sim. O que você precisa fazer é simples. Eles têm dinheiro, não é? 

— Não quero o dinheiro deles. Ela me ofereceu um aumento. Não é isso.

— Cale a boca. Não é para você, sua idiota. Eles vão ficar com o dinheiro deles. E Will provavelmente recebeu uma boa quantia de seguro por causa do acidente. Bom, diga a eles que você quer uma verba e então você usa ao longo dos... quantos eram?... quatro meses que ainda tem. E você vai fazer Will Traynor mudar de ideia. 

— O quê? 

— Fazê-lo mudar de ideia. Você disse que ele passa quase todo o tempo em casa, certo? Bom, comece com algo pequeno, então, uma vez que você tenha feito ele sair de casa de novo, pense nas coisas incríveis que poderia fazer por ele, tudo que pudesse fazê-lo querer viver: aventuras, viagens ao exterior, nadar ao lado de golfinhos, o que quer que seja, e então você coloca isso em prática. Posso ajudá-la. Vou pesquisar coisas na internet. Aposto que podemos arrumar programas ótimos para vocês fazerem. Que o deixariam realmente feliz. 

Eu a encarei.

 — Katrina... 

— É. Pode dizer. Eu sei. — Ela fez uma careta quando sorriu. — Eu sou um gênio.


Capítulo 10 


Os Traynor ficaram meio surpresos. Na verdade, surpresos é pouco. A Sra. Traynor ficou pasma, depois um pouco desconcertada, e então fechou a cara. A lha, enroscada ao lado dela no sofá, olhou para mim furiosa, da mesma forma que mamãe fazia quando mandava eu não me mexer nem se o vento mudasse.

 Não era exatamente a reação entusiasmada que eu esperava. 

— Mas o que você quer fazer exatamente? 

— Ainda não sei. Minha irmã é boa em pesquisa. Está tentando descobrir quais programas são possíveis para tetraplégicos. Mas o que eu realmente queria saber era se vocês gostariam de ir junto. 

Estávamos na sala de visitas. A mesma sala onde fui entrevistada, só que dessa vez a Sra. Traynor e a lha se encarapitavam no sofá, com o velho e baboso cão entre elas. O Sr. Traynor estava ao lado da lareira. Eu usava minha jaqueta jeans estilo camponês francês, um minivestido e coturnos. Pensando melhor, acho que podia ter escolhido um visual mais sério para expor meu plano. 

— Deixe-me ver se entendi direito. — Camilla Traynor inclinou-se para a frente. — Você quer tirar Will de casa. 

— Isso. 

— E levá-lo numa série de “aventuras”. 

Ela falou de um modo que fez parecer que eu estava sugerindo submetê-lo a uma cirurgia experimental. 

— Sim. Como eu disse, ainda não sei o que é possível. Mas a proposta é sair com ele para ampliar seus horizontes. Primeiro, podíamos fazer algumas coisas por perto, depois, com sorte, iríamos mais longe. 

— Você se refere a viajar para o exterior? 

— Exterior...? — Pisquei. — Eu pensava em, quem sabe, levá-lo ao pub. Ou a um show, só para começar. 

— Há dois anos Will só sai de casa para consultas no hospital.

 — Bom, é... pensei em convencê-lo a fazer outras coisas. 

— E você, claro, iria com ele em todas essas aventuras — concluiu Georgina Traynor. 

— Olhe, não é nada de extraordinário. Estou falando apenas em tirá-lo de casa, para
começar. Dar uma volta pelos arredores do castelo ou ir ao pub. Se acabarmos nadando com golfinhos na Flórida, ótimo. Mas, de verdade, eu só queria tirá-lo de casa um pouco e fazê-lo pensar em outras coisas. 

Não acrescentei que só o pensamento de levá-lo ao hospital como única responsável ainda me dava calafrios. E pensar em levá-lo ao exterior, para mim, era o mesmo que participar de uma maratona.

 — Acho uma ótima ideia — disse o Sr. Traynor. — Seria maravilhoso que Will passeasse por aí. Não pode ser bom para ele passar dia após dia olhando para quatro paredes.

 — Tentamos sair com ele, Steven — disse a Sra. Traynor. — Não queríamos que ficasse mofando em casa. Tentei inúmeras vezes. 

— Eu sei, querida, mas não deu muito certo, não é? Se Louisa está disposta a sugerir coisas que ele queira tentar, só pode ser algo bom, não acha? 

— Bom, “disposta a sugerir” é a frase-chave. 

— É só uma ideia — insisti.  De repente, fiquei irritada. Sabia o que ela estava pensando. — Se vocês não quiserem... 

— ...você vai embora? — ela olhava direto para mim. 

Sustentei o olhar. Camilla Traynor não me assustava mais. Pois agora sabia que ela não era melhor do que eu. Era uma mulher capaz de sentar-se e deixar o lho morrer bem na sua frente. 

— Sim, provavelmente irei. 

— Então, isso é uma chantagem. 

— Georgina! 

— Bom, não vamos encobrir os fatos, papai. 

Aprumei-me um pouco. 

— Não, não é chantagem. É o que posso oferecer. Não posso ficar parada esperando até que... Will... bem. — Minha voz sumiu. 

Cada um olhou para sua xícara de chá. 

— Como eu disse — repetiu o Sr. Traynor, firme. — Acho que é uma ideia muito boa. Se conseguir convencer Will, não há mal nenhum. Adoraria que ele saísse de férias. Só... só diga o que precisamos fazer.

 — Tive uma ideia. — A Sra. Traynor pôs a mão no ombro da lha. — Você poderia sair de férias com eles, Georgina.

 — Acho ótimo — concordei. Achava mesmo. Pois a possibilidade de eu levar Will de férias era a mesma de competir no Mastermind. 

Georgina Traynor mexeu-se desconfortável no sofá. 

— Não posso. Você sabe que começo no novo emprego daqui a duas semanas. Não poderei voltar para a Inglaterra tão cedo. 

— Você vai retornar para a Austrália?

— Não fique tão surpresa, mamãe. Eu disse que era apenas uma visita. 

— Eu só achei que... considerando os últimos fatos, você fosse querer ficar um pouco mais. — Camilla Traynor olhava para a lha como jamais olhara para Will, por mais agressivo que ele fosse. 

— É um emprego muito bom, mamãe. Eu corri atrás dele por dois anos. — Ela olhou para o pai. — Não posso colocar minha vida em suspenso por causa do estado psicológico de Will. 

Fez-se um longo silêncio. 

— Não é justo. Se eu estivesse numa cadeira de rodas, você pediria para Will mudar os planos dele? 

A Sra. Traynor não olhou para a filha. Abaixei a cabeça e li e reli em silêncio o primeiro parágrafo da minha lista de sugestões. 

— Eu também tenho uma vida, sabe. — A frase saiu como um protesto. 

— Vamos discutir isso outra hora. — O Sr. Traynor colocou a mão no ombro da lha e o apertou de leve. 

— É, vamos. — A Sra. Traynor mexeu nos papéis em seu colo. — Muito bem. Então proponho que façamos desta forma: quero saber tudo o que está planejando — disse, olhando para mim. — Quero saber os preços e, se possível, as datas para tentar conseguir uma folga e ir com vocês. Tenho alguns dias de férias que não tirei, posso... 

— Não. 

Todas nós viramos para o Sr. Traynor. Ele acarinhava a cabeça do cachorro com uma expressão simpática, mas sua voz era firme.

 — Não. Acho que você não deve ir, Camilla. Will precisa fazer isso sozinho. 

— Steven, ele não pode fazer isso sozinho. Ele precisa levar muitas coisas quando vai a qualquer lugar. É complicado. Acho que não podemos deixar por conta de... 

— Não, querida — repetiu ele. — Nathan pode ajudar e Louisa consegue muito bem dar conta. 

— Mas... 

— Temos que deixar Will se sentir um adulto. O que será impossível com a mãe ou, quem sabe, a irmã sempre ao lado dele. 

Senti uma súbita pena da Sra. Traynor. Ela continuava com aquela expressão altiva, mas eu podia ver que, no fundo, estava meio perdida, como se não entendesse muito bem o que o marido propunha. Segurou o colar. 

— Posso garantir que ele vai ficar bem — disse. — E vou avisar com bastante antecedência tudo o que pretendemos fazer. 

Ela mantinha a mandíbula tão rígida que um pequeno músculo pouco abaixo da maçã do rosto ficou visível. Fiquei me perguntando se ela me detestava. 

— Também desejo que Will queira viver — acrescentei, por fim. 

— Nós sabemos — disse o Sr. Traynor. — E agradecemos a sua determinação. E discrição. 

Não entendi bem se isso era em relação a Will, ou a outra coisa completamente diferente; ele então se levantou e percebi que era um sinal para eu me retirar. Georgina e a mãe continuaram no sofá, caladas. Concluí que, assim que eu saísse da sala, eles continuariam a conversar sobre o assunto. 

— Muito bem — concluí. — Mostrarei o plano a vocês depois de estruturar tudo na minha cabeça. Não demoro. Não temos muito... 

O Sr. Traynor deu um tapinha no meu ombro. 

— Eu sei. Basta nos avisar o que decidiu — disse.

* * *

Treena estava soprando as mãos para aquecê-las, seus pés se moviam para cima e para baixo involuntariamente, como se marchasse sem sair do lugar. Estava usando a minha boina verde-escura que cava bem melhor nela do que em mim, o que era irritante. Ela se inclinou para a frente, apontou para uma lista que tinha acabado de tirar do bolso e me entregou.

 — Pode ser que você precise excluir o Item 3, ou pelo menos esperar até a temperatura subir um pouco.

 Olhei a lista. 

— Basquete de tetraplégicos? Nem sei se ele gosta de basquete. 

— Não importa. Puxa, aqui está muito frio. — Ela enfiou mais a boina na cabeça. — O importante é que ele conheça as possibilidades que tem. Que há outras pessoas na mesma situação, que praticam esportes e fazem coisas. 

— Não sei. Ele não consegue nem segurar uma xícara. Esses jogadores devem ser paraplégicos. Não sei como podem jogar bola sem usar os braços. 

— Você não está entendendo. Ele não precisa fazer nada, é só para abrir os horizontes, certo? Precisamos fazer com que ele veja o que os outros deficientes físicos estão fazendo. 

— Vamos ver então. 

A multidão soltou uma exclamação baixinha. Foi porque os atletas surgiram, a certa distância de nós. Se eu casse na ponta dos pés, podia vê-los no vale a uns três quilômetros, vários pontinhos brancos se mexendo, abrindo caminho no frio por uma estrada úmida e cinzenta. Olhei o relógio. Estávamos havia quarenta minutos ali na colina que recebera o nome bastante adequado de Windy Hill, e eu já não conseguia mais sentir os pés por causa do frio.

 — Dei uma olhada nos eventos que vamos ter por aqui e, se você não quiser dirigir até muito longe, daqui a duas semanas haverá um jogo no centro esportivo. Ele pode até fazer uma aposta.

 — Aposta? 

— É, assim ele se envolve um pouco sem precisar jogar. Ah, olha, os atletas estão vindo. Quanto tempo acha que levam até chegar aqui? 

Estávamos perto da linha de chegada. Acima de nós, uma faixa anunciava a “Linha de Chegada do Triatlo da Primavera” e ondulava com o vento frio. 

— Não sei. Vinte minutos? Ou mais? Tenho uma barra de chocolate para emergências, caso queira dividir comigo. — Peguei-a no bolso. Era impossível segurar a lista de sugestões com uma mão só. — Então, o que mais você descobriu? 

— Você disse que queria ir mais para o interior, não é? — Ela apontou para a minha mão. — Você ficou com o maior pedaço de chocolate. 

— Então que com este. Acho que a família de Will pensa que estou tirando proveito da situação. 

— Por você querer sair com ele alguns míseros dias? Céus. Eles deviam agradecer por alguém fazer isso. Já que eles não se dão o trabalho. 

Treena pegou o outro pedaço de chocolate.

 — Enfim, acho que ele podia fazer o Item 5. Curso de informática. Eles prendem na cabeça da pessoa um aparelho que possui um bastão e com um gesto de cabeça é possível escrever no teclado. Há milhares de tetraplégicos na internet. Ele pode fazer muitos amigos. Ou seja, não vai ser necessário sair de casa sempre. Cheguei até a conversar com um casal na sala de bate-papo. Eles pareciam ótimos. Bem... — ela deu de ombros — ...normais. 

Comemos nossas metades da barra de chocolate em silêncio, enquanto observávamos os pobres atletas se aproximarem. Não consegui ver Patrick. Nunca conseguia. Ele tinha aquele tipo de cara que some no meio da multidão. 

Treena mostrou a anotação no papel.

— Olha, na parte cultural tem um concerto especial para deficientes físicos. Você disse que ele é culto, certo? Pois então, ele só precisa ficar lá sentado e se deixar levar pela música. Anal, a finalidade da música é fazer com que você se desligue do mundo, não? Quem me disse isso foi Derek, o bigodudo do meu trabalho. Ele disse também que o concerto pode ser meio barulhento por causa de alguns deficientes, que às vezes gritam. Mas tenho certeza que mesmo assim Will vai gostar. 

Franzi o nariz. 

— Não sei, Treen... 

— Você se assustou porque eu falei em “cultura”. Basta ficar sentada lá com ele. E nada de comer biscoitos crocantes. Mas se quiser um programa mais apimentado... — Ela abriu um enorme sorriso. — Tem um clube de striptease em Londres. Você podia ir com ele. 

— Levar meu patrão a um show de striptease?

— Bom, você disse que faz tudo para ele... dá comida, limpa e tal. Não vejo problema em ficar ao lado dele enquanto tem uma ereção. 

— Treena! 

— Ele deve sentir falta. Você podia até pagar para uma stripper dançar no colo dele. 

Várias pessoas no meio da multidão olharam para nós. Minha irmã ficou rindo. Ela falava de sexo desse jeito, como se fosse uma espécie de atividade recreativa. Como se não tivesse importância. 

— Por outro lado, há também as viagens mais longas. Não sei o que você imaginou, mas podiam degustar vinhos no Vale do Loire... não é longe demais, para começar. 

— Tetraplégicos ficam bêbados? 

— Não sei, pergunte a ele. 

Franzi o cenho olhando a lista.

— Então... digo aos Traynor que vou embebedar o lho tetraplégico com tendências suicidas, gastar o dinheiro deles com strippers e depois levá-lo aos Jogos Paraolímpicos... 

Treena pegou a lista da minha mão. 

— Bom, você não consegue sugerir nada mais inspirado.

— Eu pensei em... sei lá. — Cocei o nariz. — Na verdade, estou meio assustada. É difícil convencê-lo até a passear pelo jardim. 

— Bom, você não pode ter medo. Ah, olhe, os atletas estão chegando. É melhor sorrirmos. 

Abrimos caminho em meio à multidão e reforçamos a torcida. Tive dificuldade para fazer o barulho necessário, pois mal conseguia mexer os lábios de tanto frio. 

Então vi Patrick, de cabeça baixa num mar de corpos concentrados, o rosto brilhando de suor, os tendões do pescoço esticados, a expressão de angústia como se estivesse sendo torturado. Esse mesmo rosto se iluminaria completamente assim que cruzasse a linha de chegada, como se precisasse mergulhar fundo dentro dele mesmo para chegar às alturas. Ele não me viu. 

— Vai, Patrick! — gritei, a voz fraca.

 E ele passou correndo rumo à linha de chegada.

* * *

Treena ficou dois dias sem falar comigo porque não fiquei tão entusiasmada com a lista de Coisas a Fazer, ao contrário do que ela esperava. Meus pais não notaram essa rusga, estavam felicíssimos por saber que eu continuaria no emprego. A diretoria da fábrica de móveis onde papai trabalhava tinha marcado várias reuniões com os funcionários para o final da semana e ele tinha certeza de que ia ser demitido. Ninguém conseguia ultrapassar a barreira dos quarenta anos.

— Somos muito gratos por sua ajuda aqui em casa, querida. — Mamãe repetiu isso tantas vezes que fiquei meio constrangida. 

Foi uma semana engraçada. Treena começou a arrumar as malas para o curso e todos os dias eu ia dar uma olhada furtiva nas malas para descobrir quais coisas minhas ela estava pretendendo levar. Ela não surrupiou quase nenhuma roupa, mas consegui recuperar um secador de cabelo, meus óculos Prada falsos e minha nécessaire com estampa de limões. Se eu pedisse explicações, ela ia dar de ombros e dizer: 

— Bom, você nunca usa essas coisas! — Como se isso bastasse.  

Treena era assim. Ela achava que era seu direito. Mesmo depois de Thomas ter nascido, ela continuava se considerando a caçulinha da família e tinha o sentimento bem arraigado de que o mundo girava em torno dela. Quando éramos pequenas, ela cava muito irritada quando queria uma coisa minha e mamãe pedia para eu “emprestar um pouquinho”, nem que fosse só para manter a paz no lar. Quase vinte anos depois, nada mudara. Tínhamos de cuidar de Thomas para Treena sair; dar comida a ele para Treena não se preocupar; comprar mais presentes de Natal e aniversário para ela já que “ela não pode comprar por causa de Thomas.” Bom, ela não precisava levar a minha maldita nécessaire com estampa de limões. Preguei um aviso na minha porta dizendo: “Minhas coisas são MINHAS. PARE COM ISSO.” Treena rasgou o aviso, reclamou com mamãe que eu era muito infantil e que o dedo mindinho de Thomas era mais maduro do que eu. 

Mas isso me fez pensar. Uma noite, depois que Treena saiu para as aulas noturnas, eu me sentei na cozinha enquanto mamãe separava as camisas de papai para passar. 

— Mãe...

 — Sim, querida. 

— Será que posso me mudar para o quarto de Treena quando ela for embora?

 Mamãe parou, pressionando no peito uma camisa meio dobrada.

 — Não sei. Não pensei nisso. 

— Eu pensei que já que ela e Thomas estarão fora, é justo que eu tenha um quarto mais adequado. Não parece inteligente deixar o quarto vazio, se eles vão morar no campus. 

Mamãe concordou com a cabeça e colocou com cuidado a camisa no cesto.

 — Você tem razão. 

— E, por direito, aquele quarto devia ser meu, já que sou a mais velha e tal. Ela só ficou com o quarto por causa de Thomas. 

Mamãe reconheceu que fazia sentido. 

— É verdade. Vou falar com Treena — disse.

 Agora percebo que foi mais sensato da parte dela consultar a minha irmã primeiro.

 Três horas depois, Treena entrou furiosa na sala. 

— O cadáver ainda nem esfriou e você já pula em cima da minha cova?

Vovô acordou assustado na cadeira e instintivamente pôs a mão no peito. 

Tirei os olhos da TV. 

— Do que você está falando?

 — Onde você acha que Thomas e eu vamos passar os fins de semana? Não cabemos no quartinho. Lá não tem nem espaço para duas camas. 

— Exatamente. E estou enclausurada lá há cinco anos. — Constatar que eu estava sempre em desvantagem me fez soar mais ofendida do que eu pretendia.

 — Não pode ficar com o meu quarto. Não é justo. 

— Você nem vai estar aqui! 

— Mas preciso dele! Thomas e eu não cabemos no quartinho de jeito nenhum! Papai, explique isso a ela! 

Papai afundou o queixo no colarinho e cruzou os braços. Detestava quando brigávamos e costumava deixar mamãe resolver a questão. 

— Deixem isso para lá, meninas — falou. 

Vovô balançou a cabeça como se não nos compreendesse. Nos últimos tempos, ele balançava muito a cabeça. 

— Não dá para acreditar em você. Por isso estava tão disposta a me ajudar com a mudança — reclamou Treena. 

— O quê? Então a sua insistência para que eu mantivesse meu emprego para ajudar você financeiramente faz parte de um plano sinistro meu? 

— Você é tão falsa. 

— Katrina, acalme-se. — Mamãe apareceu na porta, com as luvas de lavar louça pingando espuma no carpete da sala. — Podemos discutir isso civilizadamente. Não quero que incomodem o vovô. 

Katrina ficou com o rosto vermelho, como acontecia quando era pequena e não conseguia o que queria. 

— Na verdade, Louisa quer que eu saia daqui. É isso. Quer que eu vá logo porque está com inveja pois eu vou fazer alguma coisa da vida. Ela só quer tornar a minha volta para casa mais difícil. 


— Ninguém sabe se você virá mesmo nos nais de semana — gritei. — Preciso de um quarto e não de um armário, e você ficou com o melhor quarto esse tempo todo só porque foi tão idiota a ponto de engravidar. 

— Louisa! — ralhou mamãe.

 — É, pois bem, se você não fosse tão burra a ponto de nem conseguir um bom emprego, podia ter sua maldita casa própria. Tem idade para isso. Ou será que finalmente percebeu que Patrick jamais se casará com você? 

— Já chega! — papai rosnou. — Já ouvi demais! Treena, para a cozinha. Lou, sente-se e cale a boca. Já tenho problemas suficientes para ainda ter que aguentar vocês me azucrinando.


— Se acha que vou ajudar você com a sua lista idiota, está enganada — sibilou Treena para mim, enquanto mamãe a retirava da sala. 

— Que bom. Eu não queria mesmo a sua ajuda, sua aproveitadora — falei, e me esquivei do exemplar da Radio Times que papai jogou em cima de mim.

* * *

No sábado de manhã, fui à biblioteca. Acho que não voltava lá desde que estava no colégio, certamente por medo de que lembrassem do livro de Jude Blume que perdi no segundo ano. Temia que, ao passar pelas colunas vitorianas da entrada, algum funcionário estendesse a mão grudenta para me cobrar as quatro libras de multa. 

O local não era mais como eu me lembrava. Metade dos livros tinha sido substituída por CDs e DVDs, havia grandes prateleiras cheias de audiolivros e até de cartões de cumprimentos. E o lugar não era nada silencioso. O som de música e palmas vinha do setor dos livros infantis, onde alguma mãe com um grupo de bebês estava com a corda toda. As pessoas liam revistas e conversavam baixinho. A seção onde os mais velhos costumavam dormir em cima dos jornais gratuitos tinha sumido, substituída por uma grande mesa oval com computadores. Sentei, desajeitada, na frente de um deles, esperando que ninguém reparasse em mim. Computadores, assim como livros, são coisas que pertencem à minha irmã. Por sorte, os funcionários parecem prever o medo que pessoas como eu sentem. Um bibliotecário veio até a minha mesa e me entregou um cartão e um papel plasticado com as instruções. Ele não ficou atrás de mim, só me avisou, em um sussurro, que estaria à minha disposição caso eu precisasse de ajuda e me deixou sentada sozinha com meu estranho casaco de capuz e a tela em branco. 

Há anos, o único computador que uso é o de Patrick. Ele só usa para baixar programas de ginástica ou comprar livros técnicos de esportes na Amazon. Se faz mais alguma outra coisa no computador, prefiro não saber. Mas obedeci a orientação do bibliotecário, segui cada passo e, por incrível que pareça, deu certo. Não só deu certo como achei fácil. 

Quatro horas depois, eu tinha iniciado a minha lista. 

E ninguém falou no livro de Judy Blume. Deve ter sido porque usei o cartão da minha irmã. 

No caminho de volta para casa, parei na papelaria e comprei um calendário. Não daqueles que tem uma ilustração diferente a cada mês ou então uma linda foto do Justin Timberlake ou pôneis da montanha. Era um calendário de parede, daqueles que você coloca no escritório, com os feriados nacionais devidamente assinalados. Comprei-o com a eficiente rapidez de quem adora mergulhar em tarefas administrativas. 

Abri o calendário no meu quartinho, pendurei-o atrás da porta e marquei o dia em que comecei a trabalhar nos Traynor, no início de fevereiro. Depois, contei os meses que faltavam e assinalei o dia doze de agosto, para o qual agora faltava apenas quatro meses. Dei um passo para trás e fiquei olhando para ele por um tempo, tentando fazer com que a pequena marcação em preto evidenciasse um pouco do peso que tinha. E então percebi com o que eu estava lidando. 

Eu tinha de preencher os pequenos retângulos brancos do calendário com um monte de coisas que pudessem causar felicidade, alegria, satisfação ou prazer. Tinha de preencher os dias com todas as experiências incríveis que um homem que não mexia os braços nem as pernas não podia mais realizar sozinho. Em apenas quatro meses de retângulos, eu marcaria passeios, viagens, visitas, almoços e concertos. Tinha de usar todos os meios práticos para realizar as atividades e pesquisar bastante para tudo dar certo. 

Depois, teria de convencer Will a ir.

 Olhei bem para o calendário, com a caneta na mão. Aquele pequeno pedaço de papel brilhoso passou a significar, de repente, uma grande responsabilidade. 

Eu dispunha de cento e dezessete dias para convencer Will Traynor de que ele tinha motivos para viver.


Capítulo 11



Um comentário:

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