22 de julho de 2016

Divergente



Divergente- Veronica Roth

Capítulo 1


HÁ UM ÚNICO espelho em minha casa. Fica atrás de um painel corrediço no corredor do andar de cima. Nossa facção permite que eu fique diante dele no segundo dia do mês, a cada três meses, no dia em que minha mãe corta meu cabelo.

Sento-me em um banco e minha mãe permanece em pé atrás de mim com a tesoura, aparando. Os fios caem no chão, formando um anel loiro e sem graça.

 Ao terminar, ela afasta os cabelos do meu rosto e os amarra em um nó. Reparo em como parece calma e em como está concentrada. Ela tem muita experiência na arte de perder-se em pensamentos. Não posso dizer o mesmo de mim.

Espio minha imagem no espelho quando ela não está prestando atenção, não por vaidade, mas por curiosidade. Um rosto pode mudar muito em três meses. No meu reflexo, vejo um rosto estreito, olhos grandes e redondos e um longo e delgado nariz. Ainda pareço uma criança, apesar de ter completado dezesseis anos em algum momento dos últimos meses. As outras facções celebram aniversários, mas nós, não. Seria um ato de autocomplacência.

 – Pronto – diz ela, ao prender o nó com um grampo. Seus olhos surpreendem os meus no espelho. É tarde demais para desviar o olhar, mas em vez de me censurar ela sorri, encarando nosso reflexo. Franzo levemente as sobrancelhas. Por que ela não me repreendeu?

– Hoje é o dia, afinal – diz ela.

– Sim – respondo.

– Você está nervosa?

Por um momento, encaro meus olhos no espelho. Hoje é o dia do teste de aptidão que me mostrará a qual das cinco facções eu pertenço. E amanhã, na Cerimônia de Escolha, escolherei uma; escolherei o caminho que vou trilhar pelo resto da minha vida; escolherei se devo ficar com minha família ou abandoná-la.

– Não – digo. – Os testes não precisam mudar nossas escolhas.

– Certo. – Ela sorri. – Vamos tomar o café da manhã.

– Obrigada. Por cortar meu cabelo.

Ela beija meu rosto e desliza o painel sobre o espelho. Acredito que minha mãe poderia ter sido linda em um mundo diferente. Seu corpo é magro sob o manto cinza. As maçãs de seu rosto são salientes e seus cílios são longos, e, quando ela solta o cabelo à noite, ele cai ondulante sobre seus ombros. Mas, como integrante da Abnegação, ela é obrigada a esconder sua beleza.

Andamos juntas até a cozinha. Nas manhãs em que meu irmão prepara o café, a mão de meu pai acaricia meus cabelos enquanto ele lê o jornal e minha mãe cantarola ao limpar a mesa – é
justamente nessas manhãs que eu me sinto mais culpada por querer deixá-los.

* * *

 O ônibus fede a fumaça. Cada vez que passa sobre um trecho irregular de asfalto, sacode-me de um lado para o outro, mesmo que eu esteja apoiada no banco para me manter parada.

Meu irmão mais velho, Caleb, está em pé no corredor, segurando a barra de metal acima de sua cabeça para manter-se firme. Não somos parecidos. Ele tem o cabelo escuro e o nariz curvado do meu pai, e os olhos verdes e covinhas nas bochechas da minha mãe. Quando era mais novo, esse conjunto de traços parecia estranho, mas agora lhe cai bem. Se não fosse um membro da Abnegação, tenho certeza de que as meninas da escola reparariam nele.

Também herdou o talento da minha mãe para o altruísmo. Ofereceu seu assento no ônibus sem hesitar a um rabugento membro da Franqueza.

 O homem veste um terno preto e uma gravata branca: o uniforme padrão da Franqueza. Sua facção valoriza a honestidade e enxerga a verdade em branco e preto. Por isso se vestem assim.

Os intervalos entre os prédios diminuem e as estradas ficam mais regulares à medida que nos aproximamos do centro da cidade. O edifício que um dia foi chamado de Sears Tower, e que hoje chamamos de Eixo, surge em meio à névoa, como uma pilastra escura no horizonte. O ônibus passa sob os trilhos elevados. Nunca entrei em um trem, embora eles nunca parem de circular e haja trilhos por toda a parte. Apenas os integrantes da Audácia andam de trem.

Há cinco anos, pedreiros voluntários da Abnegação restauraram algumas das ruas. Começaram os consertos pelo centro e seguiram em direção aos limites da cidade, até que seus materiais se esgotaram. As ruas da região onde moro ainda são rachadas e desiguais e não é seguro dirigir por elas. Mas isso não importa, porque nós não temos carro.

A expressão de Caleb permanece tranquila enquanto o ônibus treme, balança e arranca pela estrada. Com o manto cinza dependurado em seu braço, ele segura a barra de ferro para manter o equilíbrio. Percebo pelos movimentos constantes de seus olhos que está observando as pessoas ao redor, esforçando-se para enxergar apenas elas, e não a si mesmo. A facção da Franqueza valoriza a honestidade, mas a nossa facção, a Abnegação, valoriza o altruísmo.

 O ônibus para em frente à escola e eu me levanto, espremendo-me para passar entre o integrante da Franqueza e o banco da frente. Ao tropeçar sobre os sapatos do homem, me apoio na mão de Caleb. Minhas calças são longas demais e eu nunca fui muito graciosa.

O edifício dos Níveis Superiores abriga a mais antiga das três escolas da cidade: Níveis Inferiores, Níveis Medianos e Níveis Superiores. Como todas as outras construções ao redor, ele é feito de vidro e aço. Há uma enorme escultura de metal em frente ao edifício que os integrantes da Audácia costumam escalar depois das aulas, desafiando uns aos outros a subir cada vez mais alto. No ano passado, vi uma das integrantes cair e quebrar a perna. Fui eu que corri para chamar a enfermeira.

– Testes de aptidão hoje – digo. Caleb não é nem um ano mais velho que eu, então somos da
mesma série.

Ele acena com a cabeça ao atravessarmos a porta de entrada. Meus músculos contraem-se quando entramos no prédio. Há um clima de fome no ar, como se cada aluno de dezesseis anos estivesse tentando devorar o máximo possível deste dia. É bem provável que não caminhemos mais por estes corredores depois da Cerimônia de Escolha. Quando escolhermos nossas novas facções, elas se encarregarão de nos oferecer o restante dos nossos estudos.

 Nossas aulas hoje durarão metade do tempo, para que possamos assistir a todas antes do teste de aptidão, que ocorrerá depois do almoço. Meu coração já está acelerado, só de pensar.

– Você não está nem um pouco preocupado com o que ele pode revelar? – pergunto a Caleb.

Paramos na bifurcação do corredor, de onde ele seguirá em uma direção, para a aula de Matemática Avançada, e eu em outra, para a aula de História das Facções.

Ele franze sua testa ao olhar para mim.

– Você está?

Poderia dizer-lhe que tenho me preocupado há semanas a respeito do que o teste de aptidão vai me revelar: Abnegação, Franqueza, Erudição, Amizade ou Audácia?

No entanto, apenas sorrio e digo:

– Não muito.

 Ele sorri de volta.

– Bem... tenha um bom dia.

 Sigo para a aula de História das Facções, mordendo o lábio inferior. Ele não respondeu minha pergunta.

Os corredores são estreitos, embora a luz que entra pelas janelas crie a ilusão de espaço, e são um dos poucos lugares em que pessoas da nossa idade e de facções diferentes se misturam. Hoje, os estudantes apresentam uma energia diferente, uma sensação de último dia.

Uma menina de cabelos longos e encaracolados grita “ei!” perto do meu ouvido, acenando para um amigo distante. Uma manga de jaqueta esbarra na minha cara. De repente, um garoto da Erudição vestindo um casaco azul me empurra. Perco o equilíbrio e bato no chão com força.

– Sai da frente, Careta – diz ele rispidamente, e segue pelo corredor.

 Meu rosto esquenta. Levanto-me e me ajeito. Algumas pessoas pararam quando eu caí, mas nenhuma ofereceu ajuda. Seus olhares apenas me acompanham até o final do corredor. Esse tipo de coisa tem acontecido com outros integrantes da minha facção há meses. Os membros da Erudição têm divulgado relatórios antagônicos em relação à Abnegação, e isso tem afetado nosso relacionamento na escola. As roupas cinza, o corte de cabelo simples e o comportamento modesto da nossa facção deveriam me ajudar a esquecer de mim mesma e fazer com que as outras pessoas se esquecessem de mim também. Mas agora eles fazem de mim um alvo.

Paro em frente a uma janela da Ala E e espero a chegada dos membros da Audácia. Faço isso todas as manhãs. Às 7h25 em ponto, eles provam sua coragem ao pular de um trem em movimento.

Meu pai chama os integrantes da Audácia de “endiabrados”. Eles têm piercings, tatuagens e usam roupas escuras. Sua principal função é proteger a grade que circunda nossa cidade. Proteger de quê, eu não sei.

Eles deveriam me deixar chocada. Eu deveria me perguntar o que a coragem, que é a virtude que mais valorizam, tem a ver com um anel de metal pendurado no nariz. No entanto, sigo-os com os olhos por onde quer que andem.

 O apito do trem toca alto e o som ressoa em meu peito. O farol do trem pisca enquanto a composição se desloca violentamente e passa em frente à escola, com suas rodas rangendo contra os trilhos de metal. Ao passarem os últimos vagões, uma quantidade enorme de jovens com roupas escuras se atira do trem em movimento, alguns caindo e rolando no chão, outros pisando em falso por um momento antes de recobrarem o equilíbrio. Um dos garotos coloca o braço em volta dos ombros de uma menina, rindo.

Assisti-los é uma atividade vã. Desvio o olhar da janela e atravesso a multidão até a sala de História das Facções.


Capítulo 2 


OS TESTES COMEÇAM depois do horário de almoço. Sentamo-nos em mesas extensas no refeitório, e os administradores chamam dez nomes por vez, um para cada sala de testes. Sento-me ao lado de Caleb e de frente para a nossa vizinha, Susan. 

O trabalho do pai de Susan exige que ele circule bastante pela cidade, o que lhe permite ter um carro e levá-la e trazê-la da escola todos os dias. Ele também se ofereceu para nos levar, mas, como Caleb costuma dizer, preferimos sair mais tarde para não incomodá-lo.

 É claro que não queremos. 

Os administradores, em sua maioria, são voluntários da Abnegação, embora haja um voluntário da Erudição em uma das salas de teste e um da Audácia em outra, pois, segundo as regras, membros da Abnegação, como nós, não podem ser testados por pessoas da nossa própria facção. As regras também ditam que não devemos nos preparar de maneira alguma para os testes, portanto não sei o que esperar deles. 

Desvio o olhar de Susan para as mesas com integrantes da Audácia, do outro lado do refeitório. Eles estão rindo, gritando e jogando cartas. Em outro conjunto de mesas, jovens da Erudição conversam entre livros e jornais, em sua busca constante por conhecimento.

 Um grupo de meninas da Amizade, vestidas de amarelo e vermelho, está sentado em círculo no chão do refeitório, brincando de um tipo de jogo com as mãos enquanto entoam cantigas. De vez em quando, elas soltam um coro de risadas quando alguém é eliminado da brincadeira e obrigado a sentar no meio da roda. Na mesa ao lado delas, garotos da Franqueza fazem gestos enfáticos com as mãos. Parecem discutir algo, mas não deve ser nada sério, porque alguns deles estão sorrindo. 

Na mesa da Abnegação, permanecemos sentados em silêncio enquanto esperamos. Os costumes das facções ditam até como devemos nos comportar nos momentos de inatividade e estão acima das preferências individuais. Duvido de que todos da Erudição queiram estar sempre estudando, ou que todo membro da Franqueza aprecie um debate acalorado, mas, como eu, eles não podem desafiar as normas de suas facções.

 Caleb é chamado no grupo seguinte. Ele caminha com confiança em direção à saída do refeitório. Não preciso desejar-lhe sorte para acalmá-lo. Ele sabe onde é seu lugar, e acredito que sempre soube. Minha memória mais antiga dele é de quando tínhamos quatro anos. Ele me deu uma bronca por não ceder minha corda de pular a uma menininha no pátio que não tinha com o que brincar. Hoje em dia, não me dá mais sermões com tanta frequência, mas seu olhar de reprovação já está marcado em minha mente. 

Já tentei explicar que meus instintos são diferentes dos dele. A ideia de ceder meu assento
ao homem da Franqueza no ônibus nem passou pela minha cabeça. Mas ele não entende. “Apenas faça o que você deve fazer”, é o que sempre diz. Para ele, as coisas são simples assim. Deveriam ser para mim também. 

Meu estômago aperta. Fecho os olhos e mantenho-os fechados durante dez minutos, até Caleb voltar e se sentar novamente. 

Ele está pálido como um fantasma. Esfrega as palmas das mãos nas pernas, como eu costumo fazer quando quero enxugar o suor e, quando as levanta novamente, seus dedos tremem. Abro a boca para perguntar algo, mas as palavras me escapam. Não posso perguntar-lhe a respeito dos resultados, e ele não pode me contar. 

Um voluntário da Abnegação chama a próxima lista de nomes. Dois da Audácia, dois da Erudição, dois da Amizade, dois da Franqueza, e então:

 – Da Abnegação: Susan Black e Beatrice Prior. 

Levanto-me porque sou obrigada, mas se pudesse permaneceria sentada ali para sempre. Sinto-me como se houvesse uma bolha no interior do meu peito que cresce a cada segundo, ameaçando rasgar-me de dentro para fora. Sigo Susan pela porta de saída. As pessoas por quem eu passo provavelmente não conseguem nos diferenciar uma da outra. Usamos as mesmas roupas e cortamos nossos cabelos loiros da mesma maneira. A única diferença é que Susan talvez não sinta como se estivesse prestes a vomitar, e não me parece que suas mãos estejam tremendo tanto que ela precise segurar a manga de sua camisa para contê-las. 

Do lado de fora do refeitório, uma fileira de dez salas nos aguarda. Elas são utilizadas apenas para os testes de aptidão, portanto nunca entrei em nenhuma delas. Ao contrário das outras salas da escola, são separadas por espelhos, e não por vidros. Vejo meu reflexo, pálido e apavorado, ao caminhar em direção a uma das portas. Susan sorri nervosamente para mim ao entrar na sala 5 e eu entro na sala 6, onde uma mulher da Audácia está me esperando.

 Ela não tem a aparência tão severa quanto os integrantes mais jovens da Audácia que conheço de vista. Tem olhos pequenos, escuros e angulosos, e veste um blazer preto e uma calça jeans. Só quando ela se vira para fechar a porta percebo a tatuagem em sua nuca, um gavião branco e preto com um olho vermelho. Se não estivesse com o coração na garganta, perguntaria a ela qual é o significado de sua tatuagem. Deve haver algum.

 Espelhos cobrem as paredes internas da sala. Posso ver meu reflexo de todos os ângulos: o tecido cinza escondendo o formato das minhas costas, meu pescoço longo, minhas mãos com juntas protuberantes, ruborizadas pelo fluxo de sangue. O teto brilha com o branco da luz. No centro da sala, há uma cadeira reclinada como a de um dentista, com uma máquina ao lado. Parece ser um lugar onde coisas terríveis acontecem. 

– Não se preocupe – diz a mulher –, não dói. 

Seu cabelo é preto e liso, mas sob a luz percebo que nele há traços de cinza. 

– Sente-se e fique à vontade – pede ela. – Meu nome é Tori. 

Sento-me desengonçadamente na cadeira e reclino o corpo, encostando a cabeça sobre o apoio. As luzes machucam meus olhos. Tori está ocupada com a máquina à minha direita.
Tento me concentrar nela, e não nos fios em suas mãos. 

– Por que o gavião? – pergunto de repente, enquanto ela prende um eletrodo em minha testa. 

– Você é a primeira pessoa curiosa que conheço da Abnegação – diz ela, erguendo a sobrancelha ao olhar para mim.

 Estremeço e meus braços ficam arrepiados. Minha curiosidade foi um erro, uma traição aos valores da Abnegação.

 Cantarolando um pouco, ela prende outro eletrodo em minha testa e explica: 

– Em certas partes do mundo antigo, o gavião simbolizava o sol. Quando fiz esta tatuagem, pensei que, se eu carregasse o sol sempre comigo, não teria medo do escuro. 

Tento me controlar para não fazer outra pergunta, mas não consigo evitar. 

– Você tem medo do escuro? 

– Eu tinha medo do escuro – corrige-me ela. Prende o eletrodo seguinte em sua própria testa, depois conecta um fio a ele. Ela encolhe os ombros. – Hoje, serve como um lembrete do medo que superei. 

Tori fica em pé atrás de mim. Aperto o braço da cadeira com tanta força que as juntas das minhas mãos ficam brancas. Ela puxa alguns fios em sua direção e liga-os a mim, a ela e à máquina atrás dela. Depois, me entrega o frasco com um líquido transparente. 

– Beba isto – diz. – O que é? – Minha garganta parece estar inchada. Engulo em seco com força. – O que vai acontecer? – Não posso falar. Apenas confie em mim. Expiro o ar dos meus pulmões e derramo o conteúdo do frasco em minha boca. Meus olhos se fecham. 

* * *

Quando abro os olhos novamente, apenas um instante havia se passado, mas estou em outro lugar. Estou novamente em pé no refeitório da escola, mas todas as longas mesas estão vazias, e vejo, através das paredes de vidro, que está nevando. Há dois cestos diante de mim, sobre uma das mesas. Dentro de um deles vejo um pedaço de queijo e no outro uma faca do tamanho do meu antebraço. 

Ouço uma voz feminina atrás de mim que diz: 

– Escolha.

 – Por quê? – pergunto. 

– Escolha – ela repete. 

Olho para trás, mas não vejo ninguém. Volto-me novamente para os cestos.

 – O que farei com eles?

 – Escolha! – ela grita. 

Quando ela grita comigo, meu medo se desfaz, dando lugar à teimosia. Fecho a cara e cruzo os braços.

– Se é assim que você quer – diz ela. 

Os cestos desaparecem. Ouço uma porta rangendo e viro-me para ver quem é. O que vejo não é uma pessoa, mas um cachorro com nariz pontudo, parado a alguns metros de mim. Ele se agacha, esgueirando-se em minha direção, e seus lábios se abrem, revelando seus dentes. Um rosnado soa do fundo de sua garganta, e percebo que um pedaço de queijo talvez fosse bastante útil agora. Ou uma faca. Mas já é tarde demais para isso. 

Penso em correr, mas o cachorro seria mais rápido do que eu. Tentar derrubá-lo à força também seria impossível. Minha cabeça começa a latejar. Preciso tomar uma decisão. Se eu conseguisse pular sobre uma das mesas e usá-la como escudo... Não, sou baixa demais para pular sobre as mesas e não sou forte o bastante para virar uma delas de lado.

 O cachorro rosna, e posso quase sentir o som vibrando dentro do meu crânio. 

No meu livro de Biologia, está escrito que cachorros conseguem sentir o cheiro do medo por causa de uma substância química secretada pelas glândulas humanas quando nos sentimos acuados; a mesma substância é secretada por animais que cachorros costumam caçar. O cheiro do medo leva-os a atacar. O cachorro aproxima-se de mim lentamente, suas unhas raspando no chão. 

Não posso correr. Não posso lutar. Mas já consigo sentir o cheiro pútrido do bafo dele e tento não pensar no que ele pode ter acabado de comer. Não há qualquer traço branco em seus olhos, apenas um brilho negro. 

O que mais sei a respeito dos cachorros? Sei que não devo encará-los. Isso seria um sinal de agressividade. Lembro-me de ter pedido um cão de estimação ao meu pai quando era mais nova, e agora, enquanto observo o chão em frente às patas do cachorro, não consigo entender o que me levou a pedir tal coisa. Ele se aproxima, ainda rosnando. Se encará-lo é sinal de agressividade, o que seria um de submissão?

 Respiro alto, mas de maneira regular. Ajoelho-me no chão. A última coisa que quero agora é me deitar em frente ao cachorro, deixando o rosto na mesma altura de seus dentes, mas essa é a minha melhor opção. Estico as pernas para trás e me apoio sobre os cotovelos. O cachorro esgueira-se em minha direção, cada vez mais perto, até eu conseguir sentir a sua respiração em meu rosto. Meus braços estão tremendo. 

Ele late em meu ouvido, e cerro os dentes para não soltar um grito de medo. 

Sinto algo áspero e molhado tocando minha bochecha. O cachorro para de rosnar e, ao levantar minha cabeça para olhá-lo, vejo que está arfando. Ele lambe meu rosto. Franzo a testa e sento-me sobre os calcanhares. O cachorro apoia suas patas sobre meus joelhos e lambe meu queixo. Faço uma careta e enxugo sua baba da minha pele, depois solto uma risada. 

– Você até que não é uma fera tão amedrontadora, não é mesmo? 

Levanto-me devagar para não assustá-lo, mas ele parece ter se tornado um animal completamente diferente daquele que eu havia encarado alguns segundos antes. Estico a mão com cuidado, para que consiga puxá-la de volta se for preciso. Ele encosta a cabeça na minha mão. De repente, sinto-me feliz por não ter escolhido a faca.

Pisco os olhos e ao abri-los vejo uma criança do outro lado do refeitório usando um vestindo branco. Ela estica os braços e berra: 

– Cachorrinho! 

Quando ela começa a correr em direção ao cachorro que está do meu lado, abro a boca para tentar alertá-la, mas é tarde demais. O cachorro vira em sua direção. Em vez de rosnar, ele late e grunhe e abocanha o ar, seus músculos se contraindo como um emaranhado de cabos. Está prestes a dar o bote. Eu não penso, apenas salto; jogo meu corpo sobre o cachorro, envolvendo seu grosso pescoço com os meus braços. 

Minha cabeça se choca contra o chão. O cachorro desaparece, assim como a garotinha. Estou sozinha na sala de testes, que agora está vazia. Giro o corpo devagar e não consigo me ver em nenhum dos espelhos. Abro a porta e entro no corredor, mas o lugar não é mais um corredor; é um ônibus, e todos os assentos estão ocupados. 

Fico em pé no corredor e agarro uma das barras de segurança. Perto de mim, um homem lê o jornal em um dos bancos. Não consigo ver seu rosto por trás do jornal, mas consigo ver suas mãos. Elas são desfiguradas, como se houvessem sido queimadas, e seguram o jornal com força, como se quisessem amassá-lo. 

– Você conhece este sujeito? – ele pergunta. Aponta para a foto na primeira página do jornal. Na manchete, está escrito: “Assassino Brutal é Finalmente Preso!” Olho fixamente para a palavra “assassino”. Há tempos não leio essa palavra, mas até sua forma me enche de pavor.

 Na foto sob a manchete, há um jovem com um rosto simples e barba. Tenho a sensação de que o conheço, mas não consigo me lembrar de onde. Ao mesmo tempo, tenho a sensação de que seria má ideia revelar isso ao homem. 

– E então? – Percebo um tom de raiva em sua voz. – Você o conhece ou não? 

Uma má ideia; não, uma péssima ideia. Meu coração dispara e agarro a barra do ônibus com força para evitar que minhas mãos tremam e me denunciem. Se eu disser a ele que conheço o homem no jornal, algo horrível vai acontecer comigo. Mas posso convencê-lo de que não o conheço. Posso simplesmente limpar a garganta e dar de ombros, mas isso seria uma mentira.

 Limpo a garganta. 

– Você o conhece ou não? – repete ele. 

Dou de ombros. 

– E então? 

Sinto meu corpo tremer. Meu medo é irracional; isso é apenas um teste, não é real. 

– Não – digo com um tom tranquilo. – Não tenho a menor ideia de quem ele é. 

O homem se levanta e finalmente consigo ver seu rosto. Ele está usando óculos escuros e sua boca é retorcida, como se estivesse rosnando. Sua bochecha é marcada por cicatrizes, como suas mãos. Ele inclina-se, aproximando-se do meu rosto. Seu hálito cheira a cigarros. Isso não é real, repito em meus pensamentos. Não é real. 

– Você está mentindo – diz ele. – Você está mentindo! 

– Não estou.

– Eu posso ver em seus olhos que você está mentindo. 

Eu endireito minha postura. 

– Não, você não pode. 

– Se você o conhecesse – diz ele com uma voz fraca –, poderia me salvar. Poderia me salvar! 

Eu o encaro com olhos semicerrados. 

– Bem – digo, e firmo o maxilar –, eu não o conheço.

Capítulo 3

ACORDO COM AS palmas das mãos suadas e o peso da culpa no peito. Estou deitada na cadeira da sala espelhada. Ao inclinar a cabeça, vejo Tori atrás de mim. Ela contrai os lábios e retira os eletrodos de nossas cabeças. Espero que ela diga algo sobre o teste, que já terminou, ou me informe que me saí bem, embora eu não ache que seja possível se sair mal em um teste como esse. Mas ela não diz nada, apenas desconecta os fios da minha cabeça.

 Ergo-me na cadeira e enxugo as palmas das mãos em minhas calças. Devo ter feito algo de errado, mesmo que tudo tenha se passado apenas na minha mente. Será que Tori está com esse olhar estranho porque não sabe como me dizer que sou uma pessoa terrível? Eu queria que ela apenas desembuchasse logo.

 – Isso – diz ela – foi intrigante. Com licença, já volto.

 Intrigante?

Levanto os joelhos até meu peito e enterro o rosto neles. Queria ter vontade de chorar, porque as lágrimas talvez me proporcionassem uma sensação de libertação, mas a vontade não me veio. Como é possível ser reprovado em um teste para o qual é proibido se preparar?

À medida que o tempo passa, vou ficando mais tensa. Sou obrigada a enxugar minhas mãos a toda hora, sempre que o suor se acumula. Ou será que estou fazendo isso apenas para me acalmar? E se eles disserem que não me encaixo em nenhuma das facções? Eu teria que viver nas ruas, com os sem-facção. Não conseguiria viver assim. Viver sem facção não significa apenas viver na pobreza e no desconforto; significa viver afastado da sociedade, separado da coisa mais importante da vida: a comunidade.

 Minha mãe me disse certa vez que não podemos sobreviver sozinhos e, mesmo se pudéssemos, não desejaríamos tal destino. Sem uma facção, não temos qualquer propósito ou razão de viver.

Balanço a cabeça. Não posso pensar assim. Tenho que me manter calma.

Finalmente, a porta se abre e Tori entra novamente na sala. Agarro os descansos da cadeira.

– Desculpe por deixá-la preocupada – diz Tori. Ela para ao lado dos meus pés, com as mãos nos bolsos. Sua aparência é tensa e pálida.

– Beatrice, seus resultados foram inconclusivos – diz. – Normalmente, cada estágio da simulação elimina uma facção ou mais, mas no seu caso apenas duas foram descartadas.

Eu a encaro.

 – Duas? – pergunto. Minha garganta está tão apertada que é difícil falar.

 – Caso você tivesse demonstrado uma aversão automática à faca e escolhido o queijo, a simulação a teria guiado para um cenário diferente e confirmado sua aptidão para a Amizade.
Isso não ocorreu, e por isso descartamos a Amizade. – Tori coça a nuca. – Normalmente, a simulação progride de maneira linear, isolando uma facção pela eliminação das outras. As escolhas que você fez não permitiriam que a Franqueza, a próxima possibilidade, fosse descartada; portanto, fui obrigada a alterar a simulação para colocá-la no ônibus. Lá, sua insistência em ser desonesta eliminou a possibilidade da Franqueza. – Ela sorri um pouco. – Não se preocupe. Só quem é realmente da Franqueza fala a verdade naquela situação.

Um dos nós em meu peito se desfaz. Talvez eu não seja uma pessoa terrível, afinal.

– Na realidade, isso não é completamente verdade. Pessoas que dizem a verdade são da Franqueza... e da Abnegação – diz ela. – O que nos leva a um problema.

Meu queixo cai.

 – Por um lado, você se atirou sobre o cachorro e não permitiu que ele atacasse a menininha, o que caracteriza-se como uma reação da Abnegação... mas, por outro, quando o homem lhe falou que a verdade o salvaria, você continuou recusando-se a revelá-la. – Ela suspira. – Não fugir do cachorro sugere a Audácia, mas pegar a faca também, e não foi isso que você fez.

 Ela limpa a garganta e continua:

– Sua resposta inteligente ao cachorro sugere um forte alinhamento com a Erudição. Eu não tenho a menor ideia de como interpretar a sua indecisão no primeiro estágio, mas...

 – Espere – interrompo-a. – Então você não tem nenhuma ideia de qual é a minha aptidão?

 – Sim e não. Minha conclusão – explica ela – é que você apresenta aptidão para a Abnegação, a Audácia e a Erudição. Pessoas que apresentam resultados assim são... – Ela olha para trás, como se esperasse ser surpreendida por alguém. – ...são chamadas de... Divergentes. – Sussurra a última palavra tão baixo que quase não a ouço, e um olhar tenso e preocupado volta a dominar seu semblante. Ela segue a lateral da cadeira e se inclina em minha direção.

– Beatrice – diz ela –, você não deve compartilhar essa informação com ninguém, sob quaisquer circunstâncias. Isso é muito importante.

– Não devemos revelar nossos resultados. – Aceno com a cabeça. – Sei disso.

– Não. – Tori agora se ajoelha ao lado da cadeira e apoia seus braços sobre o descanso. Nossos rostos estão a poucos centímetros de distância. – Isso é diferente. Não estou dizendo que você não deve revelar o resultado agora; o que quero dizer é que não deve revelá-lo a ninguém, nunca, não importa o que aconteça. A Divergência é algo extremamente perigoso. Você entendeu bem?

Não entendi. Como é possível que resultados inconclusivos nos testes sejam perigosos? Mesmo assim, aceno com a cabeça. Não quero compartilhar o resultado do meu teste com ninguém, de qualquer maneira.

– Tudo bem. – Solto os braços da cadeira e me levanto. Sinto-me tonta.

– Sugiro – diz Tori – que você vá para casa. Você tem muito o que pensar, e esperar com os outros não será bom para você.

– Preciso avisar ao meu irmão aonde estou indo.

– Eu o avisarei.

Levo a mão à minha testa e fixo o chão ao sair da sala. Não tenho coragem de olhá-la nos olhos. Não tenho coragem de pensar a respeito da Cerimônia de Escolha amanhã.

Agora a escolha é minha, independente do resultado do teste.

Abnegação. Audácia. Erudição.

Divergente.

 * * *

 Decido não pegar o ônibus. Se eu chegar cedo em casa, meu pai vai reparar quando conferir o registro caseiro no fim do dia, e serei obrigada a explicar o que aconteceu. Decido, então, caminhar. Terei de falar com Caleb antes que comente qualquer coisa com nossos pais, mas ele sabe manter segredo.

Caminho no meio da estrada. Como os ônibus costumam circular colados ao meio-fio, é mais seguro caminhar assim. Às vezes, nas ruas perto da minha casa, consigo ver os locais onde as faixas amarelas costumavam estar. Não precisamos mais delas agora que os carros são tão raros. Também não precisamos de sinais de trânsito, mas eles continuam pendurados de maneira precária sobre algumas partes das estradas, como se fossem desabar a qualquer momento.

 As renovações na cidade ocorrem de maneira lenta, e o espaço urbano se tornou uma mistura de prédios novos e limpos e construções velhas e decadentes. A maior parte dos novos edifícios fica próxima ao pântano, que há muito tempo costumava ser um lago. A agência de voluntários da Abnegação para a qual minha mãe trabalha é responsável por grande parte das renovações.

Quando tento enxergar o estilo de vida da Abnegação de maneira distanciada, considero-o lindo. Ao assistir a minha família mover-se em harmonia; quando somos convidados para um jantar e todos ajudam na limpeza depois, sem que ninguém tenha que pedir; quando vejo Caleb ajudar um estranho a carregar suas compras, apaixono-me por essa vida novamente. Mas, quando tento viver isso por conta própria, tenho dificuldade. O processo nunca me parece genuíno.

Mas escolher uma facção diferente significa renunciar à minha família. Permanentemente.

O trecho da cidade repleto de esqueletos de construções e calçadas rachadas pelo qual caminho fica logo após o setor da Abnegação. Há locais em que a estrada desabou completamente, revelando sistemas de esgoto e galerias subterrâneas vazias que eu deveria evitar; e outros têm um fedor tão forte de esgoto e lixo que sou obrigada a tapar o nariz.

É neste local que vivem os sem-facção. Por não terem conseguido completar a iniciação para a facção que escolheram, são obrigados a viver na pobreza, encarregando-se dos trabalhos que ninguém mais quer fazer. São faxineiros, peões de obra e garis; fabricam tecidos e guiam trens e ônibus. Como pagamento por seu trabalho, recebem comida e roupa, mas, como diz minha mãe, não o bastante.


Vejo um homem sem facção parado em uma esquina adiante. Usa roupas marrons em farrapos e tem uma papada sob o queixo. Ele me encara e eu o encaro de volta, sem conseguir desviar o olhar.

– Perdão – diz ele. Sua voz é áspera. – Você poderia me dar algo para comer?

Sinto um nó na garganta. Uma voz severa na minha cabeça me diz para olhar para o chão e continuar andando.

Não. Eu balanço a cabeça. Não devo temer este homem. Ele precisa de ajuda e devo ajudá-lo.

– É... sim – digo. Enfio a mão na minha mochila. Meu pai me ensinou a sempre carregar algum tipo de comida na mochila, exatamente para esse tipo de situação. Ofereço um pequeno pacote de fatias de maçã desidratadas ao homem.

Ele estica o braço, mas, em vez de pegar o pacote, agarra meu pulso. Sorri para mim. Há uma falha entre seus dentes dianteiros.

– Nossa, como você tem olhos bonitos – diz ele. – É uma pena que o resto seja tão sem graça.

Meu coração dispara. Tento soltar a mão, mas ele aperta meu pulso com mais força. Sinto um odor pungente e desagradável em seu bafo.

 – Você parece ser um pouco jovem demais para estar andando por aí sozinha, querida – ele diz.

Paro de tentar soltar o braço e endireito meu corpo. Sei que pareço jovem; ele não precisa me lembrar disso.

– Sou mais velha do que pareço – respondo. – Tenho dezesseis anos.

Ele abre os lábios, revelando o molar cinza com uma cavidade escura na lateral da boca. Não sei se está sorrindo ou fazendo uma careta.

– Então, hoje é um dia especial para você, não é mesmo? O dia anterior à sua escolha?

– Me solta – digo. Há um zumbido em meus ouvidos. Minha voz soa clara e firme. Não é o que eu esperava ouvir. Parece a voz de outra pessoa.

Estou pronta. Sei o que fazer. Imagino-me puxando o cotovelo para trás e batendo no homem. Vejo o pacote de maçãs voando na direção oposta. Escuto meus passos enquanto corro. Estou preparada para agir.

Mas, de repente, o homem solta meu pulso, pega o pacote de maçãs e diz:

– Escolha com sabedoria, menininha.

Capítulo 4 

CHEGO A MINHA rua cinco minutos antes do que o normal, de acordo com o meu relógio, que é o único adorno que a Abnegação permite que usemos, por ser um objeto prático. Meu relógio tem uma correia cinza e uma superfície de vidro. Inclinando-o da maneira certa, consigo ver vagamente meu reflexo sobre os ponteiros.

Todas as casas da minha rua têm o mesmo tamanho e formato. Elas são feitas de cimento cinza, com poucas janelas, em um formato retangular minimalista e econômico. Seus jardins são cobertos de grama selvagem e suas caixas de correio são compostas de um metal simples. Para certas pessoas, a composição pode parecer deprimente, mas considero a simplicidade das casas acolhedora.

O motivo para a simplicidade não é o desprezo pela singularidade, como as outras facções já afirmaram em certas ocasiões. Nossas casas, nossas roupas, nossos cortes de cabelo, tudo é projetado para que nos esqueçamos de nós mesmos e para nos proteger da vaidade, da cobiça e da inveja, que são apenas formas de egoísmo. Se possuímos pouco e queremos pouco, e se somos todos iguais, não invejamos ninguém.

Esforço-me para amar essa filosofia.

Sento-me nos degraus da entrada de casa e espero a chegada de Caleb. Ele não demora muito. Depois de alguns minutos, vejo figuras com mantos cinza subindo a rua. Ouço risadas. Na escola, tentamos não chamar atenção, mas quando chegamos em casa permitimo-nos brincadeiras e diversão. Mesmo assim, minha inclinação natural para o sarcasmo não é bem-vista. O sarcasmo sempre ocorre à custa de terceiros. Talvez seja realmente melhor que a Abnegação me obrigue a reprimi-lo. Talvez eu não precise deixar minha família. Talvez, se me esforçar para me encaixar na Abnegação, meu esforço se transforme em realidade.

– Beatrice! – diz Caleb. – O que aconteceu? Você está bem?

– Estou bem. – Ele está com a Susan e com o irmão dela, Robert, e Susan me olha de maneira estranha, como se eu fosse uma pessoa diferente da que ela conhecia de manhã. Dou de ombros. – Quando o teste acabou, me senti mal. Deve ter sido aquele líquido que eles nos deram. Mas já estou me sentindo melhor.

Tento sorrir de maneira convincente. Pareço ter convencido Susan e Robert, que não demonstram mais qualquer tipo de preocupação em relação à minha estabilidade mental, mas Caleb me encara com os olhos semicerrados, como costuma fazer sempre que suspeita de que alguém esteja escondendo a verdade.

– Vocês dois vieram de ônibus hoje? – pergunto. Não me importo com a maneira pela qual Susan e Robert voltaram para a casa, mas preciso mudar de assunto.

– Nosso pai teve que trabalhar até tarde – diz Susan –, e ele nos disse que precisávamos reservar um tempo para pensar antes da cerimônia de amanhã.

Meu coração dispara quando ela fala da cerimônia.

– Se quiserem, podem passar aqui em casa mais tarde – diz Caleb educadamente.

– Obrigada. – Susan sorri para Caleb.

Robert ergue a sobrancelha e olha para mim. Estivemos trocando olhares há um ano, assim como Susan e Caleb têm se paquerado da maneira naturalmente hesitante dos membros da Abnegação. Caleb segue Susan com os olhos à medida que ela desce a rua. Sou obrigada a agarrar seu braço para arrancá-lo de seu estado de deslumbramento. Puxo-o para dentro de casa e fecho a porta atrás de nós.

Ele se vira para mim. Suas sobrancelhas escuras e retas se aproximam uma da outra, formando uma ruga entre elas. Com esse semblante, ele fica mais parecido com minha mãe do que com meu pai. Posso facilmente imaginá-lo vivendo o mesmo tipo de vida que meu pai viveu: ficando na Abnegação, aprendendo um ofício, casando-se com Susan e criando uma família. Será maravilhoso.

Talvez eu não esteja aqui para ver.

– Agora você me dirá a verdade? – pergunta ele gentilmente.

– A verdade é – digo – que eu não devo falar a respeito do teste. E que você não deve perguntar.

– Você ignora tantas regras, e não pode ignorar esta? Nem por algo tão importante? – Suas sobrancelhas se aproximam ainda mais, e ele morde o canto da boca. Embora suas palavras sejam de acusação, ele parece estar tentando arrancar informações de mim, como se realmente quisesse que eu respondesse.

Encaro-o com olhos semicerrados.

– E você pode? O que aconteceu no seu teste, Caleb?

Nossos olhares se encontram. Ouço o apito de um trem, tão distante que poderia ser o som do vento passando por um corredor. Mas o reconheço. Parece um chamado dos membros da Audácia, convidando-me a juntar-me a eles.

– Só... não diga nada aos nossos pais sobre o que aconteceu, tudo bem? – digo.

Ele continua a me encarar por alguns segundos, depois assente com a cabeça.

Quero subir para meu quarto e me deitar. O teste, a caminhada e meu encontro com o homem sem-facção me exauriram. Mas meu irmão preparou o café da manhã no início do dia, minha mãe preparou nossos almoços e meu pai fez o jantar ontem, o que significa que é a minha vez de cozinhar. Eu respiro fundo e entro na cozinha para começar a preparar a comida.

Minutos depois, Caleb junta-se a mim. Cerro meus dentes. Ele ajuda com tudo. O que mais me irrita a seu respeito é sua bondade natural, seu altruísmo inato.

Caleb e eu trabalhamos juntos em silêncio. Cozinho ervilhas no fogão. Ele descongela quatro pedaços de frango. A maior parte do que comemos é congelada ou enlatada, porque as fazendas hoje em dia estão muito longe. Minha mãe me disse que, há muito tempo, havia
pessoas que se recusavam a comprar alimentos geneticamente modificados, pois achavam que eles não eram naturais. Hoje em dia, não temos nenhuma opção.

Quando meus pais chegam em casa, o jantar está pronto e a mesa está posta. Meu pai solta sua bolsa na entrada e beija minha cabeça. Algumas pessoas consideram-no um homem teimoso, talvez até teimoso demais, mas ele também é carinhoso. Tento enxergar apenas seu lado bom; tento mesmo.

– Como foi o teste? – pergunta-me ele. Coloco as ervilhas em uma saladeira.

– Foi tudo bem – digo. Eu não poderia mesmo ser da Franqueza. Minto com muita facilidade.

– Ouvi dizer que houve algum tipo de problema em um dos testes – diz minha mãe. Como meu pai, ela trabalha para o governo, mas coordena projetos de melhoria urbana. Ela recrutou voluntários para a aplicação dos testes de aptidão. Mas geralmente organiza trabalhadores para ajudar os sem-facção com alimentação, moradia e oportunidades de emprego.

– É mesmo? – diz meu pai. É raro haver algum problema com os testes de aptidão.

– Não sei exatamente o que aconteceu, mas minha amiga Erin me disse que algo deu errado em um dos testes, e por isso os resultados tiveram que ser transmitidos oralmente. – Minha mãe coloca um guardanapo ao lado de cada prato da mesa. – Parece que o aluno ficou doente e teve que ir para casa mais cedo. – Ela ergue os ombros. – Espero que ele esteja bem. Vocês ouviram alguma coisa a esse respeito?

– Não – diz Caleb, e sorri para minha mãe.

Meu irmão também não poderia pertencer à Franqueza.

Sentamo-nos à mesa. Sempre passamos a comida para a direita e ninguém come antes que todos estejam servidos. Meu pai dá as mãos a meu irmão e a minha mãe, e eles dão as mãos ao meu pai e a mim, e meu pai agradece a Deus pela comida, pelo trabalho, pelos amigos e pela família. Nem todas as famílias da Abnegação são religiosas, mas meu pai diz que não devemos dar atenção a tais diferenças, ou elas nos dividirão. Não sei exatamente o que pensar a respeito disso.

– Então – fala minha mãe para meu pai. – Qual é o problema?

Ela segura a mão dele e acaricia suas juntas com o dedão em pequenos movimentos circulares. Olho para suas mãos unidas. Meus pais se amam, mas raramente demonstram afetividade diante de nós dessa maneira. Eles nos ensinaram que o contato físico é algo poderoso, por isso o tenho evitado desde a minha infância.

– Me diga o que o está incomodando – diz ela.

Encaro meu prato. Os sentidos aguçados da minha mãe costumam me surpreender, mas agora eles parecem me repreender. Por que eu estava tão absorta em meus próprios problemas que não percebi o olhar profundo de preocupação e a postura carregada do meu pai?

– Tive um dia difícil no trabalho hoje – diz ele. – Bem, na verdade, foi o Marcus quem teve um dia difícil. Não é certo dizer que fui eu.

Marcus é um companheiro de trabalho do meu pai; ambos são líderes políticos. A cidade é regida por um conselho de cinquenta pessoas, todas representantes da Abnegação, já que, pelo seu comprometimento com o altruísmo, nossa facção é considerada incorruptível. Nossos líderes são selecionados por seus pares de acordo com a impecabilidade de seu caráter, sua força moral e sua capacidade de liderança. Representantes de cada uma das outras facções podem se pronunciar nas audiências sobre determinados assuntos, mas a decisão final é sempre do conselho. E embora o conselho teoricamente decida em conjunto, Marcus é um membro especialmente influente.

As coisas têm funcionado dessa maneira desde o começo da grande paz, quando as facções foram formadas. Acho que o sistema é mantido porque tememos o que pode acontecer se acabar: a guerra.

– Isso tem a ver com o relatório que a Jeanine Matthews divulgou? – pergunta minha mãe. Jeanine Matthews é a principal representante da Erudição, selecionada pelo nível do seu QI. Meu pai costuma reclamar bastante dela.

Eu olho para eles.

– Um relatório?

Caleb me lança um olhar de advertência. Não devemos falar na mesa de jantar a não ser que nossos pais nos façam uma pergunta direta, o que raramente acontece. Meu pai costuma dizer que nossos ouvidos receptivos são uma dádiva para eles. Eles nos oferecem seus ouvidos receptivos depois do jantar, na sala da família.

– Sim – responde meu pai. Suas pálpebras se contraem. – Aqueles arrogantes e hipócritas... – Ele interrompe sua fala e limpa a garganta. – Desculpem-me. Mas ela divulgou um relatório atacando o caráter de Marcus.

Ergo as sobrancelhas.

– E o que estava escrito no relatório?

– Beatrice – sussurra Caleb.

Abaixo a cabeça, virando o garfo várias vezes na mão até que o calor no meu rosto se dissipe. Não gosto de ser repreendida. Especialmente por meu irmão.

 – Estava escrito – meu pai diz – que a violência e a crueldade de Marcus em relação a seu filho foram as razões pelas quais o rapaz escolheu a Audácia, e não a Abnegação.

Poucas pessoas nascidas na Abnegação escolhem deixá-la. Quando algo assim ocorre, não esquecemos. Há dois anos, o filho de Marcus, Tobias, deixou nossa facção e se juntou à Audácia, e isso o deixou arrasado. Tobias era seu único filho e sua única família, depois que a mulher falecera ao dar à luz o segundo filho. O bebê morreu minutos depois.

Nunca vi o Tobias. Ele raramente frequentava os eventos comunitários e nunca acompanhou o pai aos jantares em nossa casa. Meu pai costumava comentar que achava isso estranho, mas nada disso importava mais.

– Cruel? O Marcus? – Minha mãe balança a cabeça. – Aquele pobre homem. A última coisa de que ele precisa agora é que o lembrem de sua perda.

– Você quer dizer, da traição de seu filho? – diz meu pai friamente. – Isso não deveria me
surpreender. Há meses que os membros da Erudição têm usado esses relatórios para nos agredir. E este não será o último. Tenho certeza de que outros virão.

Mais uma vez, eu não deveria me pronunciar, mas não consigo me conter.

– Por que eles estão fazendo isso? – pergunto.

– Por que você não aproveita este momento para escutar o que seu pai tem a dizer, Beatrice? – diz minha mãe gentilmente. Ela me apresenta a pergunta como uma sugestão, e não como uma ordem. Olho para Caleb do outro lado da mesa, e vejo seu olhar de desaprovação.

Encaro minhas ervilhas. Não sei se consigo viver essa vida de obrigações por muito mais tempo. Não sou boa o bastante nisso.

 – Você sabe o motivo – fala meu pai. – Porque nós temos algo que eles querem. Valorizar o conhecimento acima de todas as coisas provoca uma sede de poder que leva o ser humano a lugares sombrios e vazios. Devemos ser gratos por evitarmos isso.

Aceno com a cabeça. Sei que não escolherei a Erudição, embora os resultados do meu teste tenham sugerido essa opção. Eu sou, afinal, filha do meu pai.

 Meus pais tiram a mesa depois do jantar. Eles não deixam Caleb ajudar, porque devemos nos reservar esta noite em vez de nos reunirmos na sala da família, para que possamos pensar a respeito dos resultados de nossos testes.

 Minha família poderia me ajudar a escolher, se eu pudesse compartilhar com eles meus resultados. Mas não posso. O aviso de Tori ressoa em minha memória a cada vez que fraquejo em minha decisão de me manter calada.

Caleb e eu subimos as escadas e, ao chegar ao topo, antes de nos separarmos para entrar em nossos quartos, ele me para, colocando uma mão em meu ombro.

– Beatrice – diz ele, fixando meus olhos. – Devemos pensar em nossa família. – Há algo de estranho em sua voz. – Mas também devemos pensar em nós mesmos.

 Encaro-o por alguns segundos. Essa é a primeira vez que o vejo pensar em si mesmo ou falar algo que não pareça altruísta.

Fico tão assustada com seu comentário que digo apenas o que devo dizer:

 – Os testes não precisam mudar nossas escolhas.

Ele esboça um sorriso.

 – Será que não?

Ele aperta meu ombro e entra em seu quarto. Espio o interior e vejo uma cama desarrumada e uma pilha de livros em sua mesa. Ele fecha a porta. Queria poder dizer-lhe que estamos passando pela mesma situação. Queria poder conversar com ele da maneira que eu quero, e não da maneira que eu devo. Mas admitir que preciso de ajuda seria demais para mim, e por isso desisto da ideia.

Entro no meu quarto e, ao fechar a porta, me dou conta de que a decisão pode ser simples. Escolher a Abnegação exigiria uma grande demonstração de altruísmo da minha parte, e escolher a Audácia exigiria uma grande demonstração de coragem, e talvez apenas a escolha entre uma das duas facções já seja uma comprovação de onde eu pertenço. Amanhã, essas duas qualidades se enfrentarão dentro de mim, e apenas uma poderá vencer.


Capítulo 5

O ÔNIBUS QUE pegamos até a Cerimônia de Escolha está cheio de pessoas com camisas e calças cinza. Um anel claro de luz solar atravessa as nuvens como a ponta acesa de um cigarro. Nunca fumarei um cigarro, já que eles estão ligados intimamente à vaidade, mas há um grupo de integrantes da Franqueza fumando em frente ao edifício quando saltamos do ônibus.

Tenho que inclinar a cabeça para trás para conseguir enxergar o topo do Eixo, e mesmo assim parte dele desaparece em meio às nuvens. O Eixo é o maior prédio da cidade. Da janela do meu quarto, consigo ver as luzes das duas torres em seu topo.

Sigo meus pais ao descermos do ônibus. Caleb parece calmo, mas eu também pareceria se soubesse o que fazer. No entanto, sinto como se meu coração fosse saltar para fora do peito a qualquer momento, e seguro o braço do meu irmão para me estabilizar enquanto subimos os degraus da entrada do prédio.

O elevador está lotado, então meu pai oferece nosso lugar a um grupo de integrantes da Amizade. Em vez de usar o elevador, subimos pela escada, seguindo-o sem questionamentos. Servimos de exemplo para os outros membros da nossa facção, e logo estamos cercados por uma massa de tecido cinza, subindo as escadas de cimento à meia-luz. Entro no ritmo dos passos da multidão. O som uniforme dos pés em meus ouvidos e a homogeneidade das pessoas ao meu redor me convencem de que eu poderia escolher isso. Eu poderia ser incluída ao pensamento de colmeia da Abnegação, projetando-me sempre para fora de mim mesma.

Mas então minhas pernas começam a doer, fico com dificuldade em respirar e mais uma vez me distraio comigo mesma. Precisamos subir vinte andares de escadas até a Cerimônia de Escolha.

Meu pai abre a porta do vigésimo andar e a segura como um sentinela até que cada membro da Abnegação tenha passado. Eu teria esperado por ele, mas a multidão me empurra em frente, para fora do vão da escada e para dentro do salão no qual decidirei o destino do resto da minha vida.

O salão é organizado em círculos concêntricos. No círculo externo, ficam os indivíduos de dezesseis anos de cada facção. Ainda não somos considerados membros; nossas decisões hoje nos tornarão iniciandos, e viraremos membros se conseguirmos completar a iniciação.

Organizamo-nos em ordem alfabética, de acordo com os sobrenomes que talvez deixemos para trás. Eu me coloco entre Caleb e Danielle Pohler, uma menina da Amizade com bochechas rosadas e vestido amarelo.

O círculo seguinte contém fileiras de cadeiras para as nossas famílias. Elas são organizadas em cinco seções, uma para cada facção. Nem todos os integrantes das facções vêm à Cerimônia de Escolha, mas há um número suficiente de pessoas para formar uma multidão.

A responsabilidade em conduzir a cerimônia se alterna entre as facções a cada ano, e este ano pertence à Abnegação. Marcus fará o discurso de abertura e lerá os nomes em ordem alfabética inversa. Caleb escolherá antes de mim.

No círculo central, localizam-se cinco recipientes de metal, tão grandes que, se me encolhesse, caberia dentro deles. Cada um dos recipientes contém uma substância que representa uma das facções: pedras cinza para a Abnegação, água para a Erudição, terra para a Amizade, brasas acesas para a Audácia e vidro para a Franqueza.

Quando Marcus pronunciar meu nome, andarei até o centro dos três círculos. Não falarei nada. Ele me oferecerá uma faca. Farei um corte em minha mão e derramarei meu sangue dentro do recipiente da facção que eu escolher.

Meu sangue nas pedras. Meu sangue fervendo nas brasas.

Antes de os meus pais se sentarem, param diante de nós. Meu pai beija a minha testa e apoia a mão sobre o ombro de Caleb, sorrindo.

– Nos vemos em breve – diz ele. Não há qualquer traço de dúvida em suas palavras.

 Minha mãe me abraça, dissipando quase completamente qualquer traço de determinação que eu tenha conseguido manter até agora. Cerro os dentes e olho para o teto, de onde luminárias esféricas estão penduradas, preenchendo o salão com uma luz azulada. Ela me abraça pelo que parece ser muito tempo, mesmo depois que abaixo os braços. Antes de me soltar, ela vira a cabeça e sussurra em meu ouvido:

– Eu te amo. Não importa o que aconteça.

 Franzo a sobrancelha enquanto ela se afasta de mim. Ela sabe o que poderei fazer. Deve saber, ou não se sentiria obrigada a dizer aquilo.

Caleb segura minha mão, apertando-a tanto que me machuca, mas eu não largo a dele. A última vez que seguramos as mãos um do outro dessa maneira foi no funeral do meu tio, enquanto meu pai chorava. Precisamos da força um do outro agora, assim como precisávamos naquele dia.

As pessoas se organizam lentamente no salão. Eu deveria estar observando os membros da Audácia; deveria estar absorvendo o máximo de informação possível, mas a única coisa que consigo fazer é observar as luminárias do outro lado do salão. Tento me perder no seu brilho azul.

Marcus fica em pé sobre o pódio, entre as seções da Erudição e da Audácia, e limpa a garganta diante do microfone.

– Sejam bem-vindos – diz ele. – Sejam bem-vindos à Cerimônia de Escolha. Sejam bemvindos à maneira com a qual honramos a filosofia democrática de nossos antepassados, que afirma que cada homem tem o direito de escolher seu próprio caminho no mundo.

Ou, penso então, um dos cinco caminhos predeterminados. Aperto os dedos de Caleb com a mesma força com que ele aperta os meus.

– Nossos dependentes agora têm dezesseis anos. Eles se encontram no precipício da maturidade, e agora é responsabilidade deles decidir que tipo de pessoas serão. – A voz de Marcus é solene, distribuindo igualmente o peso de cada palavra. – Há décadas, nossos antepassados perceberam que a culpa por um mundo em guerra não poderia ser atribuída à ideologia política, à crença religiosa, à raça ou ao nacionalismo. Eles concluíram, no entanto, que a culpa estava na personalidade humana, na inclinação humana para o mal, seja qual for a sua forma. Dividiram-se em facções que procuravam erradicar essas qualidades que acreditavam ser responsáveis pela desordem no mundo.

Volto meu olhar para os recipientes no centro do salão. No que eu acredito? Não sei; não sei; não sei.

– Os que culpavam a agressividade formaram a Amizade. Os integrantes da Amizade trocam sorrisos. Eles se vestem de maneira confortável, com roupas vermelhas ou amarelas. Sempre que os vejo, parecem-me bondosos, amorosos, livres. Mas me juntar a eles nunca foi uma opção para mim.

– Os que culpavam a ignorância se tornaram a Erudição.

Eliminar a opção da Erudição foi a única parte fácil da minha escolha.

 – Os que culpavam a duplicidade fundaram a Franqueza.

Nunca simpatizei com a Franqueza.

– Os que culpavam o egoísmo geraram a Abnegação.

Eu culpo o egoísmo; culpo mesmo.

 – E os que culpavam a covardia se juntaram à Audácia.

Mas eu não sou altruísta o bastante. Tenho tentado há dezesseis anos e simplesmente não sou altruísta o bastante.

Minhas pernas ficam dormentes, como se tivessem perdido toda a vitalidade, e me pergunto como serei capaz de andar quando eles chamarem meu nome.

– Trabalhando juntas, as cinco facções têm vivido em paz há anos, cada uma contribuindo com um diferente setor da sociedade. A Abnegação supriu nossa demanda por líderes altruístas no governo; a Franqueza providenciou líderes confiáveis e seguros no setor judiciário; a Erudição nos ofereceu professores e pesquisadores inteligentes; a Amizade nos deu conselheiros e zeladores compreensivos; e a Audácia se encarrega de nossa proteção contra ameaças tanto internas quanto externas. Mas o alcance de cada facção não se limita a essas áreas. Oferecemos uns aos outros muito mais do que pode ser expressado em palavras. Em nossas facções, encontramos sentido, encontramos propósito, encontramos vida.

Penso no lema que li no meu livro didático sobre a História das Facções: A facção antes do sangue. Mais do que às nossas famílias, pertencemos às nossas facções. Será que isso é realmente verdade?

Marcus conclui:

– Longe delas, não sobreviveríamos.

O silêncio que se segue às suas palavras é mais pesado do que outros silêncios. Carrega o
peso do nosso maior medo, maior até do que o medo da morte: o medo de se tornar um sem-facção.

Marcus continua:

 – Portanto, celebramos hoje uma ocasião feliz: o dia em que recebemos novos iniciandos, que trabalharão conosco em prol de uma sociedade e um mundo melhores.

Uma salva de palmas. Elas soam abafadas. Tento manter-me completamente parada, porque, quando consigo manter meus joelhos fixos e meu corpo duro, paro de tremer. Marcus lê os primeiros nomes, mas não consigo distinguir as sílabas. Como saberei quando ele chamar o meu?

Um por um, cada jovem de dezesseis anos deixa a fila e se dirige ao centro do salão. A primeira garota a decidir escolhe a Amizade, a mesma facção de onde veio. Vejo suas gotas de sangue pingarem sobre a terra, depois ela se coloca atrás dos assentos da facção, sozinha.

O salão está em constante movimento; um novo nome e uma nova pessoa escolhendo, uma nova faca e uma nova escolha. Reconheço a maioria das pessoas, mas duvido que eles saibam quem sou.

– James Tucker – anuncia Marcus.

James Tucker, da Audácia, é a primeira pessoa a tropeçar a caminho dos recipientes. Ele abre os braços e recupera o equilíbrio antes de cair no chão. Seu rosto fica vermelho e ele caminha rápido até o meio do salão. Já no centro, olha para o recipiente da Audácia, depois para o da Franqueza: as chamas laranja que crescem cada vez mais alto e o vidro que reflete a luz azulada.

Marcus oferece a faca. O garoto respira fundo, inflando o peito e, ao expirar, aceita-a. Então passa a lâmina na palma da mão de maneira violenta e estende o braço para o lado. Seu sangue se derrama sobre o vidro e ele é o primeiro de nós a trocar de facção. O primeiro transferido. Ouve-se um murmúrio na seção da Audácia, e encaro o chão.

Eles o verão como um traidor de agora em diante. Seus familiares da Audácia terão a opção de visitá-lo em sua nova facção daqui a uma semana e meia, no Dia da Visita, mas não irão, porque ele os abandonou. Sua ausência assombrará os corredores e ele se tornará um vazio que não conseguirão preencher. Com o passar do tempo, o vazio desaparecerá, como ocorre quando um órgão é removido e os fluidos corporais preenchem o espaço que deixou. Os humanos não conseguem tolerar o vazio por muito tempo.

– Caleb Prior – diz Marcus.

Caleb aperta minha mão uma última vez e, ao se afastar, encara-me por um longo tempo. Observo seus pés movendo-se em direção ao centro do salão e suas mãos firmes ao aceitarem a faca que Marcus lhe entrega movem-se com destreza quando uma aperta a lâmina contra a outra. Ele fica parado, enquanto o sangue forma uma pequena poça na palma da sua mão, e seus lábios se contraem.

Ele expira. Depois inspira. Depois, estende a mão sobre o recipiente da Erudição, e seu sangue pinga para dentro da água, escurecendo o tom de vermelho contido nela.

Ouço uma comoção que rapidamente se transforma em gritos de protesto. Mal consigo pensar. Meu irmão, meu irmão altruísta, um transferido? Meu irmão, nascido para a Abnegação, na Erudição?

 Ao fechar os olhos, vejo a pilha de livros sobre a mesa de Caleb, e suas mãos trêmulas esfregando-se em suas pernas depois do teste de aptidão. Como não fui capaz de perceber, quando ele me disse ontem que eu deveria pensar em mim mesma, que ele também estava oferecendo esse conselho a si mesmo?

Observo os membros da Erudição, que ostentam sorrisos presunçosos e se acotovelam. Os da Abnegação, geralmente plácidos, agora se comunicam em sussurros tensos e encaram o outro lado do salão, onde está a facção que se tornou nossa inimiga.

– Atenção – diz Marcus, mas a multidão não lhe dá ouvidos.

 – Silêncio, por favor! – grita ele.

 O silêncio domina o salão. Exceto por um zumbido agudo.

 Ouço meu nome e um tremor me propulsiona para a frente. Na metade do caminho em direção aos recipientes, tenho certeza de que escolherei a Abnegação. Tudo me parece claro. Já posso imaginar-me amadurecendo como uma mulher que se veste com túnicas da Abnegação, casada com Robert, o irmão de Susan, trabalhando como voluntária nos finais de semana, na paz da rotina, nas noites tranquilas diante da lareira, na certeza de que estarei segura e, se não totalmente feliz, certamente mais feliz do que me encontro agora.

Percebo que o zumbido que ouço vem dos meus próprios ouvidos.

Olho para Caleb, que agora está em pé atrás da seção da Erudição. Ele me encara de volta e acena levemente com a cabeça, como se soubesse o que estou pensando e concordasse comigo. Meus passos fraquejam. Se Caleb não pertence à Abnegação, como posso pertencer? Mas que escolha tenho agora que ele nos deixou e sou a única que restou? Ele não me deixou opção.

Tensiono o maxilar. Serei a filha que fica; preciso fazer isso por meus pais. Preciso.

Marcus me oferece a faca. Eu encaro seus olhos, de um tom azul-escuro, uma cor estranha, e a aceito. Ele acena com a cabeça, e me viro na direção dos recipientes. Tanto o fogo da Audácia quanto as pedras da Abnegação estão à minha esquerda, um recipiente em frente ao meu ombro e o outro atrás dele. Seguro a faca com a mão direita e encosto a lâmina na palma da esquerda. Rangendo os dentes, passo a lâmina sobre minha pele. Arde um pouco, mas quase não reparo na dor. Levo minhas duas mãos ao peito e respiro com dificuldade.

Abro os olhos e lanço meu braço para a esquerda. O sangue pinga no carpete, entre os dois recipientes. Depois, com um suspiro que não consigo conter, lanço meu braço para a frente, e meu sangue faz as brasas chiarem.

Sou egoísta. Sou corajosa.


Capítulo 6

PREGO OS OLHOS no chão e me coloco atrás dos iniciandos nascidos na Audácia que escolheram voltar para sua facção de origem. Todos eles são mais altos do que eu, e, mesmo quando levanto a cabeça, a única coisa que consigo ver são ombros vestidos de preto. Quando a última garota faz sua escolha, a Amizade, chega a hora de ir embora. A Audácia é a primeira a deixar o salão. Passo diante dos homens e mulheres vestidos de cinza da facção a qual eu costumava pertencer, olhando fixamente para a nuca da pessoa que caminha na minha frente.

Porém, preciso ver meus pais uma última vez. Olho para o lado logo antes de passar por eles e imediatamente me arrependo. Os olhos do meu pai queimam os meus com uma expressão de acusação. A princípio, ao sentir um calor atrás dos meus olhos, penso que ele descobriu uma maneira de atear fogo em mim, de me punir pelo que fiz, mas não. A verdade é que estou quase chorando.

Ao seu lado, minha mãe sorri.

As pessoas atrás de mim me empurram em frente, para longe dos meus pais, que estarão entre as últimas pessoas a ir embora. Eles talvez até fiquem para ajudar a empilhar as cadeiras e limpar os recipientes. Viro a cabeça para procurar Caleb em meio à multidão da Erudição atrás de mim. Ele está entre os iniciandos, apertando a mão de outro transferido, um rapaz que costumava pertencer à Franqueza. O sorriso leviano em sua boca é um sinal de traição. Meu estômago aperta e viro o rosto. Se isso é tão fácil para ele, talvez devesse ser fácil para mim também.

Olho para o rapaz à minha esquerda, que costumava ser da Erudição e agora está tão pálido e nervoso quanto eu deveria estar. Passei tanto tempo tentando decidir qual facção deveria escolher que não parei para considerar o que aconteceria se optasse pela Audácia. O que espera por mim na sede da facção?

A multidão da Audácia que nos empurra segue em direção às escadas, e não aos elevadores. Pensei que só a Abnegação usasse as escadas.

 De repente, todos começam a correr. Ouço vaias e gritos e risadas por todo lado, e o estrondo de dezenas de passos se movendo em ritmos diferentes. Para a Audácia, usar as escadas não é um ato de altruísmo; para eles, é um ato de selvageria.

 – O que diabos está acontecendo? – grita o garoto ao meu lado.

Apenas balanço a cabeça e continuo correndo. Estou sem fôlego quando alcançamos o primeiro andar, e o grupo da Audácia sai em alvoroço para a rua. Lá fora, o ar está gelado e o céu rebate o laranja do sol que se põe, refletido no vidro negro do Eixo.

Os integrantes da Audácia se espalham pela rua, bloqueando a passagem de um ônibus, e eu corro mais rápido para alcançar o final da multidão. À medida que corro, minha confusão se dissipa. Faz muito tempo que não corro para lugar nenhum. A Abnegação aconselha seus membros a evitar qualquer coisa feita por puro divertimento, e o que estamos fazendo agora não é nada mais do que isso: meus pulmões ardendo, meus músculos doendo, o prazer selvagem de uma genuína corrida. Sigo os integrantes da Audácia enquanto descem a rua e viram a esquina, e então ouço um som familiar: o apito do trem.

 – Ah, não – resmunga o garoto da Erudição. – A gente vai ter que pular para dentro daquilo?

– Sim – digo, sem fôlego.

 Ainda bem que passei tanto tempo assistindo aos integrantes da Audácia chegarem à escola. A multidão se espalha em uma longa fila. O trem se aproxima pelos trilhos de aço com as luzes piscando e o apito tocando alto. As portas dos vagões estão abertas para que os membros da Audácia embarquem, e é exatamente isso o que eles fazem, grupo por grupo, até que apenas os iniciandos fiquem de fora. Os iniciandos nascidos na Audácia já estão acostumados a isso, e em um segundo só sobram os transferidos.

 Eu e mais algumas pessoas nos colocamos à frente do grupo e começamos a correr. Acompanhamos o vagão por alguns metros, depois nos lançamos para o lado. Não sou tão alta e forte quanto algumas das outras pessoas, e não consigo puxar meu corpo para dentro do vagão. Seguro uma barra ao lado da porta, enquanto meu ombro se choca contra a parede do trem. Meus braços tremem, até que finalmente uma garota da Franqueza me agarra e me puxa para dentro. Agradeço, esbaforida.

Ouço um grito e olho para trás. Um menino baixo e ruivo que era da Erudição estica os braços e tenta alcançar o trem. Perto da porta, uma garota da Erudição estende o braço para tentar alcançar sua mão, esforçando-se ao máximo para puxá-lo para dentro, mas ele está longe demais. Ele cai de joelhos sobre os trilhos enquanto nos afastamos no trem, depois apoia a cabeça em suas mãos.

Sinto-me inquieta. Ele acabou de ser reprovado na iniciação da Audácia. Agora é um sem-facção. Isso poderia acontecer a qualquer momento.

– Você está bem? – pergunta-me animadamente a garota da Franqueza que me ajudou. Ela é alta, sua pele é marrom-escura e seu cabelo é curto. É bonita.

 Faço que sim com a cabeça.

– Meu nome é Christina – diz ela, estendendo-me a mão.

Faz muito tempo que não aperto a mão de alguém. Na Abnegação, as pessoas cumprimentam-se com acenos de cabeça, como sinal de respeito. Seguro sua mão sem convicção, sacudindo-a duas vezes, e espero não ter apertado fraco demais, ou forte demais.

– Beatrice – respondo.

– Você sabe aonde estamos indo? – Ela precisa gritar para ser ouvida em meio ao barulho do vento, que sopra cada vez mais forte pelas portas abertas. O trem está acelerando. Eu me sento. Será mais fácil manter o equilíbrio se eu estiver mais próxima do chão. Ela levanta a sobrancelha enquanto olha para mim.

– Um trem em disparada é sinônimo de ventania – digo. – E o vento pode nos empurrar para fora. Sente-se.

Christina senta-se ao meu lado, depois empurra o corpo para trás para apoiar as costas na parede.

– Acho que estamos indo para a sede da Audácia – digo –, mas não sei onde ela fica.

– Será que alguém sabe? – Ela balança a cabeça, sorrindo. – Eles parecem ter simplesmente brotado de algum buraco no chão.

O vento varre o vagão e os outros transferidos, empurrados pelas rajadas, caem uns sobre os outros. Vejo Christina rir sem conseguir ouvi-la e consigo até esboçar um sorriso.

À minha esquerda, a luz alaranjada do pôr do sol rebate nos prédios de vidro, e consigo enxergar vagamente as fileiras de casas cinza onde costumava ficar a minha moradia.

Hoje seria a vez de Caleb preparar o jantar. Quem irá assumir seu lugar, minha mãe ou meu pai? E, quando forem esvaziar o quarto dele, o que encontrarão? Imagino os livros escondidos entre a cômoda e a parede, os livros sob o colchão. A sede por conhecimento da Erudição preenchendo todos os espaços escondidos do quarto. Será que ele sempre soube que escolheria a Erudição? E, se já sabia, por que eu não fui capaz de perceber?

Que bom ator ele foi. Pensar nisso me dá náuseas, porque, apesar de eu também tê-los abandonado, pelo menos não fui capaz de dissuadi-los da mesma maneira. Todos já sabiam que eu não era altruísta.
Fecho os olhos e imagino minha mãe e meu pai sentados à mesa de jantar, em silêncio. Será que o fato de a minha garganta apertar ao pensar neles é um resquício de altruísmo, ou será egoísmo, porque sei que nunca mais serei a filha deles?

* * *

– Eles estão pulando do trem!

 Levanto a cabeça. Meu pescoço dói. Estive agachada assim, com minhas costas encostadas na parede, por pelo menos meia hora, escutando o ruído do vento e assistindo à paisagem borrada da cidade passar por nós. Endireito o corpo. O trem desacelerou nos últimos minutos, e vejo que o menino que gritou estava certo: os integrantes da Audácia nos vagões dianteiros estão pulando do trem para um telhado que passa ao lado. Os trilhos estão a sete andares de altura.

A ideia de pular de um trem em movimento até um telhado, sabendo que há um vão entre os trilhos e a beirada do prédio, me dá ânsia de vômito. Eu me levanto e ando, cambaleante, até o lado oposto do vagão, onde os outros transferidos se organizam em fila.

– Também temos que pular, então – diz uma garota da Franqueza. Ela tem um nariz enorme e dentes tortos.

– Ótimo – responde um garoto da Franqueza. – Isso faz muito sentido, Molly. Pular sobre um telhado a partir de um trem em movimento.

– Fomos nós que escolhemos isso, Peter – afirma a garota.

– Bem, eu é que não vou – diz um garoto da Amizade, atrás de mim. Sua pele é morena e ele está usando uma camisa marrom. É o único transferido da Amizade. Lágrimas escorrem sobre suas bochechas.

– Você tem que pular – diz Christina –, ou será reprovado. Vamos, vai dar tudo certo.

– Não, não vou. Prefiro ser um sem-facção a morrer! – O menino da Amizade balança a cabeça. Parece estar em pânico. Continua a balançar a cabeça enquanto olha para o telhado, que se aproxima cada vez mais.

Não concordo com ele. Eu preferiria morrer a me tornar vazia como os sem-facção.

– Você não pode forçá-lo a pular – digo, olhando para Christina. Seus olhos marrons estão arregalados, e ela comprime tanto os lábios que eles mudam de cor. Ela me oferece a mão.

– Vamos – diz. Levanto a sobrancelha e olho para a mão que ela me oferece. Estou prestes a falar que não preciso de ajuda, quando ela continua: – Eu simplesmente... não conseguirei pular a não ser que alguém me arraste junto.

 Seguro sua mão e nos dirigimos à beirada do vagão. Quando ele alcança o telhado, eu conto:

– Um... dois... três!

No três, nós nos lançamos para fora do trem. Depois de um momento em que me sinto suspensa no ar, meus pés se chocam contra o chão sólido do telhado e sinto uma pontada de dor nos calcanhares. A aterrissagem violenta lança meu corpo contra o telhado, e meu rosto vai de encontro aos cascalhos. Solto a mão de Christina. Ela está rindo.

– Isso foi divertido – diz ela.

Christina se encaixará perfeitamente no espírito aventureiro da Audácia. Todos os iniciandos, exceto o garoto da Amizade, conseguiram alcançar o telhado, alguns de maneira melhor; outros, pior. Molly, a menina da Franqueza com dentes tortos, segura o tornozelo e faz uma cara de dor; e Peter, o menino da Franqueza com o cabelo brilhante, sorri orgulhosamente. Ele deve ter caído em pé.

De repente, ouço um grito. Viro a cabeça, procurando a origem do som. Uma garota da Audácia está em pé na beirada do telhado, olhando para a calçada abaixo e berrando. Atrás dela, um garoto da Audácia segura sua cintura para evitar que ela caia.

– Rita – diz ele. – Rita, acalme-se. Rita...

Caminho até a beirada e olho para baixo. Há um corpo na calçada; uma menina, com os braços e pernas retorcidos de maneira estranha e com o cabelo espalhado em um círculo ao redor da cabeça. Meu estômago aperta e olho para os trilhos do trem. Nem todo mundo conseguiu alcançar o telhado. Nem mesmo os integrantes da Audácia estão seguros.

Rita cai de joelhos, chorando. Viro o rosto para não ver. Quanto mais eu olhar para ela, maior a probabilidade de começar a chorar também, e não posso chorar na frente dessas pessoas.

Tento convencer a mim mesma, da maneira mais severa possível, que é assim que as coisas funcionam aqui. Fazemos coisas perigosas e pessoas morrem. Pessoas morrem e seguimos em
frente, em direção ao próximo perigo. Quanto mais rápido eu assimilar isso, maiores serão minhas chances de sobreviver à iniciação.

Não tenho mais certeza de que conseguirei sobreviver.

Decido contar até três, e depois disso seguirei em frente. Um. Lembro o corpo da garota na calçada e sinto um calafrio. Dois. Ouço os soluços de Rita e os murmúrios de consolação do menino atrás dela. Três.

Franzo os lábios e me distancio de Rita e da beirada do telhado.

 Meu cotovelo arde. Levanto a manga da minha camisa para examiná-lo, com as mãos tremendo. Um pedaço de pele se soltou, mas o machucado não está sangrando.

– Nossa, que escândalo! Uma Careta está exibindo um pedaço do corpo!

Levanto a cabeça. “Careta” é a gíria usada para designar os integrantes da Abnegação, e sou a única da facção no local. Peter aponta para mim, rindo debochadamente. Ouço mais risadas. Meu rosto esquenta, e abaixo a manga da minha camisa.

– Escutem todos! Meu nome é Max! Sou um dos líderes da sua nova facção! – grita um homem do outro lado do telhado. Ele é mais velho que os outros, com rugas profundas em sua pele escura e cabelos cinza em suas têmporas, e fica em pé sobre a mureta na beirada do telhado como se aquilo fosse uma calçada. Parece não se importar com o fato de que alguém acabou de cair dali e morrer. – Alguns andares abaixo de nós, encontra-se a entrada para membros do nosso complexo. Quem não tiver coragem de pular, não pertence a este grupo. Nossos iniciandos terão o privilégio de ir primeiro.

– Você quer que nós pulemos do telhado? – pergunta uma garota da Erudição. Ela é alguns centímetros mais alta do que eu, com cabelo castanho-claro e lábios carnudos. Está boquiaberta.

Não entendo por que ainda ficaria chocada com isso.

 – Sim – diz Max. Ele parece estar se divertindo.

– Tem água lá embaixo ou algo do tipo?

– Quem sabe? – Ele ergue as sobrancelhas.

 O grupo em frente aos iniciandos se divide em dois, abrindo um caminho largo para nós. Eu olho ao redor. Ninguém parece muito interessado em pular do prédio e todos evitam olhar para Max. Alguns limpam pequenos machucados e retiram os cascalhos que ficaram presos a suas roupas. Eu olho para Peter. Ele está cutucando uma de suas cutículas, tentando agir de maneira casual.

Sou orgulhosa. Algum dia irei me meter em confusão por causa disso, mas hoje meu orgulho me torna corajosa. Caminho em direção à beirada do telhado e ouço risadinhas atrás de mim.

Max abre caminho, liberando minha passagem. Caminho até a mureta e olho para baixo. O vento golpeia minhas roupas, fazendo o tecido estalar. O prédio onde estamos fica em um dos lados de uma praça, que conta com mais três outros edifícios. No centro da praça, há um enorme buraco no concreto. Não consigo ver o que há no fundo.

Isso é apenas uma tática para nos amedrontar. Alcançarei o fundo do buraco em segurança.
Esse pensamento é a única coisa que me ajuda a subir na mureta. Meus dentes estão batendo. Não posso voltar atrás agora. Não com todas as pessoas atrás de mim apostando que vou fracassar. Minhas mãos tateiam a gola da minha camisa e encontram o botão que a mantém fechada. Depois de algumas tentativas, solto os botões e tiro a camisa.

Estou usando uma camiseta cinza sob a camisa. Ela é a roupa mais apertada que tenho e ninguém jamais me viu vestida com ela. Amasso minha camisa em uma bola e olho para trás, para Peter. Lanço a bola de tecido sobre ele com o máximo de força que consigo, contraindo meu maxilar. A camisa se choca contra seu peito. Ele me encara. Ouço vaias e gritos atrás de mim.

Olho novamente para o buraco. Os pelos em meus braços arrepiam-se e meu estômago revira-se dentro da barriga. Se eu não pular agora, não conseguirei pular nunca mais. Engulo em seco.

Não penso. Apenas dobro os joelhos e pulo.

O vento sopra em meus ouvidos à medida que o chão se aproxima, crescendo e expandindo; ou me aproximo do chão, com o coração batendo tão forte que dói e com cada músculo do meu corpo tensionado, enquanto a sensação de queda aperta meu estômago. Sou envolvida pelo buraco e caio para dentro da escuridão.

Atinjo algo duro, que cede sob meu peso e depois sustenta meu corpo. O impacto arranca o ar dos meus pulmões e eu bufo, esforçando-me para recuperar a respiração. Meus braços e pernas ardem.

Uma rede. Há uma rede no fundo do buraco. Olho para os prédios acima e começo a rir, em uma mistura de alívio e histeria. Meu corpo treme e cubro o rosto com as mãos. Acabei de pular de um prédio.

Preciso pisar em terra firme novamente. Vejo algumas mãos estendidas para mim da beirada da rede, então agarro a primeira que consigo alcançar e uso-a para me puxar para fora. Rolo o corpo para fora da rede e quase caio de cara no chão de madeira, mas ele me segura.

“Ele” é o jovem dono da mão que agarrei. Tem o lábio superior fino e o inferior grosso. Seus olhos são tão fundos que os cílios encostam-se à pele sob suas sobrancelhas, e são de um tom azul-escuro, uma cor lúdica, adormecida e prolongada.

Suas mãos seguram meus braços, mas ele me solta assim que me coloco em pé novamente.

– Obrigada – digo.

Estamos em uma plataforma a três metros do chão. Ao redor de nós, há uma vasta caverna.

– Não acredito – diz uma voz que vem de trás do rapaz. Ela pertence a uma garota de cabelos escuros e três argolas de prata na sobrancelha direita. Ela ri de mim. – Uma Careta, a primeira a pular? Isso é inédito.

– Existe uma razão para ela tê-los deixado, Lauren – diz ele. Sua voz é profunda e ressoa no ar. – Qual é o seu nome?

– É... – Não sei por que hesito. Mas o nome “Beatrice” simplesmente não parece mais adequado.


– Pode pensar – afirma ele, esboçando um sorriso. – Essa é sua única chance de escolher um.

Um lugar novo, um nome novo. Posso começar do zero aqui.


 – Tris – digo com firmeza.

– Tris – repete Lauren, sorrindo. – Faça o anúncio, Quatro.

O garoto, Quatro, olha para trás e grita:

– A primeira a pular: Tris!

Uma multidão surge à medida que meus olhos se acostumam com a escuridão. Eles comemoram e lançam os punhos para o ar, e então outra pessoa aterrissa na rede. Ela cai gritando. É Christina. Todos riem, mas em seguida começam a comemorar novamente.

Quatro apoia a mão nas minhas costas e diz

 – Seja bem-vinda à Audácia.


Capítulo 7

QUANDO TODOS OS iniciandos já estão novamente em terra firme, Lauren e Quatro nos guiam por um túnel estreito. As paredes são de pedra e o teto é em declive, fazendo com que eu sinta como se estivesse descendo para o centro da terra. Há longos intervalos entre as áreas iluminadas do túnel, e nas áreas escuras entre a luz fraca de uma lâmpada e outra, sinto que perdi o caminho, até que um ombro esbarra contra o meu. Nos locais iluminados, sinto-me segura novamente.

O garoto da Erudição à minha frente para de repente, e esbarro nele, batendo com o nariz em seu ombro. Recuo um pouco e esfrego a mão no nariz, recuperando-me da pancada. Todo mundo parou, e nossos três líderes se voltam para nós com os braços cruzados.

 – É aqui que nos separamos – diz Lauren. – Os iniciandos nascidos na Audácia vêm comigo. Acho que vocês não precisam de um tour do local.

 Ela sorri e acena na direção dos iniciandos nascidos na Audácia. Eles se separam do grupo e partem em meio às sombras. Vejo o último deles sumir na escuridão e olho para os que restaram. A maior parte dos iniciandos era da Audácia, portanto só restam nove pessoas. Destas, sou a única que era da Abnegação, e não há ninguém da Amizade. O resto do grupo é da Erudição e, por incrível que pareça, da Franqueza. Ser honesto o tempo todo deve exigir coragem. Eu não saberia dizer.

Quatro fala conosco em seguida.

– Eu geralmente trabalho na sala de controle, mas durante as próximas semanas, serei seu instrutor – diz ele. – Meu nome é Quatro.

 – Quatro? Como o número? – pergunta Christina.

– Sim – responde ele. – Você tem algum problema com isso?

– Não.

– Ótimo. Nós estamos prestes a entrar no Fosso, que vocês um dia irão aprender a amar. Ele...

Christina ri jocosamente

. – Fosso? Que ótimo nome.

Quatro caminha até Christina e aproxima o rosto do dela. Seus olhos se estreitam e por um instante ele simplesmente a encara.

– Qual é o seu nome? – pergunta ele calmamente.

– Christina – responde ela baixinho.

– Bem, Christina, se eu quisesse aguentar os espertinhos da Franqueza, teria me juntado à sua facção – diz ele, irritado. – A primeira lição que você aprenderá de mim é como manter sua boca calada. Entendeu bem?

 Ela acena que sim com a cabeça.

Quatro se dirige às sombras no fim do túnel. O grupo de iniciandos segue-o em silêncio.

 – Que canalha! – resmunga ela.

 – Acho que ele não gosta que riam dele – respondo.

Percebo que é melhor eu tomar cuidado com Quatro. Ele me pareceu tranquilo quando estávamos na plataforma, mas há algo no seu jeito calmo que me inquieta agora.

Quatro empurra uma porta dupla e entramos no lugar que ele chamou de “Fosso”.

– Ah – sussurra Christina. – Agora entendi.

“Fosso” é realmente a melhor maneira de descrever o lugar. É uma caverna subterrânea tão grande que, do fundo, onde estou, não consigo ver o outro lado. Paredes de rochas desniveladas se agigantam por vários andares sobre minha cabeça. Há espaços reservados para comida, roupas, acessórios e atividades de lazer, construídos nas paredes de pedra. Caminhos estreitos e degraus entalhados nas rochas conectam esses espaços. Não há qualquer barreira para impedir que pessoas despenquem das passagens.

Uma área inclinada de luz laranja estende-se por uma das paredes de pedra. O teto do Fosso é composto de painéis de vidro e, sobre eles, há um edifício que permite a entrada da luz solar. O prédio deve ter parecido apenas mais uma construção urbana quando passamos por ele de trem.

Luminárias azuis estão penduradas em intervalos aleatórios sobre os caminhos de pedra e se parecem com as que iluminavam o Salão de Escolha. À medida que a luz do sol se torna mais fraca, elas se tornam mais fortes.

Há pessoas por todo lado, todas vestidas de preto, e todas falando, gritando e gesticulando expressivamente. Não vejo nenhum idoso em meio à multidão de pessoas. Será que existe alguém velho na Audácia? Será que eles não duram tanto tempo ou são simplesmente mandados embora quando não conseguem mais saltar de trens em movimento?

Um grupo de crianças corre tão rápido por um caminho estreito, sem qualquer grade de proteção, que meu coração acelera, e quase grito para que corram mais devagar, para que não se machuquem. Lembro-me das ruas ordenadas da Abnegação: uma fileira de pessoas na direita passando por uma fileira de pessoas na esquerda, sorrisos contidos, cabeças inclinadas para baixo e silêncio. Meu estômago aperta. Mas há algo de maravilhoso no caos da Audácia.

 – Sigam-me – diz Quatro –, e lhes mostrarei o abismo.

Ele faz um sinal para que sigamos em frente. A aparência de Quatro parece mansa, se comparada à da maioria dos integrantes da Audácia, mas, quando ele se vira, vejo o trecho de uma tatuagem saindo de trás da gola de sua camiseta. Ele nos guia para o lado direito do Fosso, que está completamente escuro. Forço os olhos e vejo que o chão em que estou pisando termina em uma grade de metal. Ao nos aproximarmos dela, ouço um ruído alto: água, água correndo rapidamente, chocando-se contra as rochas.

Olho para baixo. O chão termina em um desfiladeiro íngreme, e vários metros abaixo de nós
há um rio. A água se choca violentamente contra a parede abaixo de mim e uma nuvem de gotículas é lançada para o alto. À minha esquerda a água é mais calma, mas à direita ela se torna branca em sua batalha contra as rochas.

– O abismo serve para nos lembrar que há um limite tênue entre a coragem e a estupidez! – grita Quatro. – Um salto intrépido para dentro dele tomaria a sua vida. Isso já ocorreu antes e ocorrerá novamente. Que isso lhes sirva de aviso.

– Isso é incrível – diz Christina, enquanto nos afastamos da grade.

– É realmente incrível – respondo, assentindo com cabeça.

Quatro guia o grupo de iniciandos pelo Fosso, em direção a um enorme buraco na parede. O aposento que se encontra além do buraco é iluminado o bastante para que eu perceba para onde estamos nos dirigindo: um refeitório repleto de pessoas e ruídos de talheres. Ao entrarmos, os integrantes da Audácia se levantam. Eles nos aplaudem. Batem os pés no chão. Gritam. O barulho me cerca e me preenche. Christina sorri e, logo depois, também sorrio.

 Procuramos assentos livres. Christina e eu encontramos uma mesa praticamente vazia em um dos cantos do salão, e acabo me sentando entre ela e Quatro. No centro da mesa, há uma bandeja com uma comida que não conheço: pedaços circulares de carne entre fatias redondas de pão. Seguro um deles entre meus dedos, sem saber ao certo o que fazer.

Quatro me cutuca com o cotovelo.

– Isto é carne – diz ele. – Coloque isto dentro. – Ele me passa um pequeno pote que está cheio de um molho vermelho.

– Você nunca comeu hambúrguer? – pergunta Christina, com os olhos arregalados.

 – Não – respondo. – É assim que se chama?

– Os Caretas comem comida simples – diz Quatro, acenando para Christina.

– Por quê? – pergunta ela.

Dou de ombros.

– A extravagância é considerada autocomplacente e desnecessária.

 Ela solta uma risadinha.

– Não me admira que você tenha partido.

– Claro – digo, girando os olhos para cima. – Foi só por causa da comida.

Quatro contorce o canto da boca.

As portas do refeitório se abrem e o silêncio domina o espaço. Eu olho para trás. Um jovem entra, e o salão fica tão silencioso que consigo ouvir seus passos. Seu rosto é perfurado por tantos piercings que eu mal consigo contá-los, e seu cabelo é longo, escuro e ensebado. Mas não é isso o que faz com que ele pareça ameaçador, e sim a expressão fria em seus olhos, que varrem o refeitório.

– Quem é esse? – sussurra Christina.

 – Seu nome é Eric – Quatro responde. – Ele é um de nossos líderes.

– Sério? Mas ele é tão jovem.

Quatro a encara severamente.

– A idade não importa aqui.

Percebo que ela está prestes a perguntar algo que eu também gostaria de saber: Então o que importa? Mas os olhos de Eric param de vagar pelo refeitório e ele começa a se dirigir a uma mesa. Começa a se dirigir à nossa mesa, sentando-se ao lado de Quatro. Não nos cumprimenta, e por isso também não o cumprimentamos.

– E então, não vai me apresentar? – pergunta, acenando a cabeça para mim e para Christina.

– Essas são Tris e Christina – diz Quatro.

– Olha só, uma Careta – diz Eric, rindo de mim. Seu riso puxa os piercings de seus lábios, esticando as perfurações que eles ocupam e fazendo com que eu me contraia de nervoso. – Vamos ver quanto tempo você vai durar.

Penso em responder algo, talvez para convencê-lo de que vou durar, sim; mas as palavras me escapam. Não sei por que, mas não quero que Eric olhe para mim mais do que já olhou. Na verdade, não quero que olhe para mim nunca mais.

Ele batuca com os dedos na mesa. As juntas da sua mão têm cicatrizes, exatamente onde elas se abririam se ele socasse algo com muita força.

– O que você tem feito, Quatro? – pergunta ele.

Quatro ergue um dos ombros.

– Nada demais – responde.

Será que eles são amigos? Meu olhar se alterna entre Eric e Quatro. Tudo o que Eric fez, desde sentar ali e perguntar a Quatro a respeito de sua vida, sugere que eles sejam amigos, mas a maneira como Quatro está sentado, tenso como uma corda esticada, sugere algo diferente. Talvez sejam rivais, mas como isso poderia ser possível, se Eric é um líder e Quatro, não?

– Max me disse que ele está tentando falar com você há tempos, mas que você nunca aparece – diz Eric. – Ele pediu para eu descobrir o que está acontecendo.

Quatro encara Eric por alguns segundos antes de dizer:

 – Diga a ele que estou satisfeito no cargo em que me encontro.

– Então, ele quer oferecer-lhe um emprego.

 Os anéis na sobrancelha de Eric refletem a luz da sala. Talvez Eric enxergue Quatro como uma possível ameaça ao seu cargo. Meu pai costuma dizer que aqueles que desejam o poder e o alcançam vivem com medo de perdê-lo. É por isso que devemos entregar o poder àqueles que não o desejam.

– Parece que sim – afirma Quatro.

– E você não está interessado?

– Há dois anos que não estou interessado.

– Bem – diz Eric. – Vamos esperar que ele se toque, então.

Ele dá um tapa no ombro de Quatro, um pouco forte demais, e se levanta. Quando faz isso, eu imediatamente relaxo o corpo. Não havia percebido que estava tão tensa.

– Vocês dois são... amigos? – digo, incapaz de conter minha curiosidade.

– Fomos da mesma turma de iniciandos – diz ele. – Ele se transferiu da Erudição.

Esqueço completamente de tomar cuidado com Quatro.

– Você também é um transferido?

– Pensei que teria problemas com a garota da Franqueza perguntando demais – afirma ele friamente. – Agora tenho uma Careta na minha cola também?

 – Deve ser porque você é tão acolhedor – digo diretamente. – Sabe? Quase como uma cama de pregos.

Ele me encara e não desvio o olhar. Ele não é um cachorro, mas valem as mesmas regras. Desviar o olhar é sinal de submissão. Encará-lo é sinal de desafio. É uma escolha minha.

Meu rosto esquenta. O que acontecerá quando a tensão estourar?

No entanto, ele apenas fala:

– Cuidado, Tris.

Meu estômago pesa como se eu tivesse acabado de engolir uma pedra. Um membro da Audácia sentado em outra mesa convida Quatro a juntar-se a eles, e volto-me para Christina. Ela ergue as duas sobrancelhas.

 – O que foi? – pergunto.

 – Estou desenvolvendo uma teoria.

– E o que diz a sua teoria?

 Ela segura o hambúrguer, sorri, e diz:

– Que você está pedindo para morrer.

 * * * 

Depois do jantar, Quatro desaparece sem nos dar qualquer satisfação. Eric guia-nos por uma série de corredores sem dizer aonde estamos indo. Não entendo por que um líder da Audácia ficaria responsável por um grupo de iniciandos, mas talvez seja só por esta noite.

No final de cada corredor há uma lâmpada azul, mas entre uma e outra o caminho é escuro, e eu preciso tomar cuidado para não tropeçar no chão desnivelado. Christina caminha ao meu lado em silêncio. Ninguém nos mandou ficar calados, mas não se ouve uma palavra.

Eric para em frente a uma porta de madeira e cruza os braços. Nos aglomeramos a seu redor.

– Para quem não sabe ainda, meu nome é Eric – diz. – Sou um dos cinco líderes da Audácia. Levamos o processo de iniciação muito a sério aqui, por isso me voluntariei para supervisionar a maior parte do seu treinamento.

Só de imaginar isso, sinto náuseas. Um líder da Audácia supervisionando a nossa iniciação já é ruim o bastante, mas o fato de ser o Eric apenas piora a situação.

– Existem algumas regras básicas aqui – diz ele. – Vocês devem estar na sala de treinamento às oito da manhã todo dia. O treinamento acontecerá todos os dias, das oito da manhã às seis da tarde, com um intervalo para o almoço. Vocês estarão livres para fazer o que quiserem depois das seis. Vocês também terão direito a um intervalo entre cada estágio da iniciação.

O termo “fazer o que quiser” fica marcado na minha mente. Em casa, eu nunca podia fazer o que queria, nem por uma única noite. Deveria antes pensar nas necessidades dos outros. Na verdade, nem sei o que gosto de fazer.

– Vocês só estão autorizados a sair do complexo acompanhados por alguém da Audácia – acrescenta Eric. – Atrás desta porta fica o quarto onde vocês irão dormir durante as próximas semanas. Vocês notarão que há dez camas, mas apenas nove de vocês. Imaginamos que uma proporção maior de iniciandos chegaria até aqui.

– Mas éramos doze no início – protesta Christina. Fecho os olhos e espero ela ser repreendida. Ela precisa aprender a ficar calada.

– Sempre há pelo menos um transferido que não consegue chegar ao complexo – diz Eric, cutucando as cutículas. Ele dá de ombros. – De qualquer maneira, no primeiro estágio da iniciação, nós mantemos os iniciandos transferidos e os nascidos na Audácia separados, mas isso não quer dizer que vocês serão avaliados separadamente. Ao final da iniciação, suas classificações serão determinadas em comparação com as dos iniciandos nascidos na Audácia. E eles já estão em vantagem. Então, eu imagino que...

– Classificações? – pergunta a menina de cabelo castanho-claro à minha direita. – Para que seremos classificados?

Eric sorri e, na luz azulada, seu sorriso parece maléfico, como se tivesse sido talhado em seu rosto com uma faca.

– A classificação de vocês servirá a dois propósitos – diz. – Primeiramente, determinará a ordem pela qual vocês escolherão um emprego após a iniciação. Há um número limitado de cargos desejáveis à disposição.

Meu estômago aperta. Pelo seu sorriso, pressinto, assim como pressenti no instante em que entrei na sala do teste de aptidão, que algo ruim está prestes a acontecer.

– O segundo propósito – fala ele – é que apenas os dez iniciandos com os melhores resultados se tornarão membros.

Sinto uma pontada de dor no estômago. Ficamos imóveis como estátuas. E então Christina diz:

– O quê?

– Há onze nascidos na Audácia, e nove de vocês – conclui Eric. – Quatro iniciandos serão eliminados no início do primeiro estágio. Os outros serão eliminados depois do teste final.

Isso significa que, mesmo tendo passado por todos os estágios da iniciação, seis iniciandos serão eliminados no final e não se tornarão membros. Pelo canto do olho, percebo que Christina está olhando para mim, mas não consigo encará-la de volta. Meus olhos estão grudados em Eric e não conseguem se mover.

Minhas chances, como a inicianda mais baixa e a única transferida da Abnegação, não são boas.

 – O que faremos se formos eliminados? – pergunta Peter.

– Vocês deixarão o complexo da Audácia – diz Eric de maneira indiferente –, e passarão a viver com os sem-facção.

 A menina com cabelo castanho-claro coloca as mãos sobre a boca e soluça, tentando reprimir o choro. Lembro-me do homem sem-facção com os dentes cinza, agarrando o pacote de maçãs das minhas mãos. Seu olhar vago me encarando. Mas, em vez de chorar como a garota da Erudição, sinto-me mais fria. Mais dura.

Eu me tornarei um membro. Eu conseguirei.

 – Mas isso... não é justo! – diz Molly, a garota de ombros largos da Franqueza. Embora suas palavras soem raivosas, ela parece estar aterrorizada. – Se eu apenas soubesse...

– Você está dizendo que, se soubesse disso antes da Cerimônia de Escolha, não teria escolhido a Audácia? – grita Eric. – Por que se é isso que quer dizer, pode ir embora agora mesmo. Se você realmente é uma de nós, a possibilidade de fracassar não deveria importar para você. E, se importa, então você é covarde.

Eric empurra a porta do dormitório e ela se abre.

– Vocês nos escolheram – diz ele. – Agora nós escolheremos vocês.

* * *

 Deitada na cama, escuto a respiração de nove pessoas.

Eu nunca havia dividido um quarto com meninos antes, mas não tenho outra opção aqui, a não ser que queira dormir no corredor. Todos os outros iniciandos colocaram as roupas que a Audácia nos forneceu, mas eu resolvo dormir com as roupas da Abnegação, que ainda guardam o cheiro de sabão e de ar puro, o cheiro de casa.

Eu costumava ter meu próprio quarto. Da minha janela, via-se o gramado do jardim da minha casa e, depois disso, o horizonte enevoado da cidade. Estou acostumada a dormir em um ambiente silencioso.

O calor se acumula atrás dos meus olhos à medida que penso na minha casa, e, quando pisco, uma lágrima escorre sobre meu rosto. Cubro a boca para abafar o soluço de tristeza.

Não posso chorar, não aqui. Preciso me acalmar.

Vai ficar tudo bem aqui. Poderei contemplar meu reflexo no espelho sempre que desejar. Poderei me tornar amiga da Christina e cortar meu cabelo curto e deixar que outras pessoas limpem suas próprias bagunças.

Minhas mãos tremem e as lágrimas se acumulam com mais rapidez em meus olhos, ofuscando minha visão.

Não importa se na próxima vez em que eu vir meus pais, no Dia da Visita, eles tenham dificuldade em me reconhecer, se é que vêm mesmo. Não importa que eu sinta uma dor no peito toda vez que me lembro dos seus rostos, mesmo que seja por apenas um segundo. Sofro até quando me lembro do rosto de Caleb, mesmo que suas mentiras tenham me machucado. Sincronizo minha respiração com as dos outros iniciandos. Nada disso importa.

Um ruído sufocado interrompe o som das respirações, seguido por um forte soluço. Ouço o ranger das molas de um colchão e o movimento de um corpo pesado em uma das camas, seguido de mais soluços, abafados inutilmente por um travesseiro. Os soluços vêm do beliche ao lado do meu; eles pertencem a Al, um menino da Franqueza que é o maior e mais alto entre todos os iniciandos. Ele é a última pessoa que eu esperava ver desfalecer dessa maneira.

Seus pés estão a poucos centímetros da minha cabeça. Eu deveria consolá-lo; deveria querer consolá-lo, pois fui educada para isso. No entanto, sinto apenas nojo dele. Alguém com uma aparência tão forte não deveria se comportar de maneira tão fraca. Por que ele não chora em silêncio como todos nós?

 Engulo em seco com força.

Se minha mãe soubesse o que estou pensando, sei o que faria comigo. Os cantos de sua boca iriam curvar-se para baixo. Suas sobrancelhas iriam franzir-se sobre seus olhos, não em uma careta de repreensão, mas quase de estafa. Esfrego a palma da mão sobre as minhas bochechas.

Al soluça outra vez. Quase posso sentir o som de seu soluço chiando em minha própria garganta. Ele está a apenas poucos centímetros de distância de mim, eu deveria tocá-lo.

Não. Abaixo minha mão e me viro de lado, olhando para a parede. Ninguém precisa saber que não quero ajudá-lo. Posso manter isso em segredo. Meus olhos se fecham e sinto o peso do sono, mas sempre que chego perto de dormir ouço Al novamente.

Talvez meu problema não seja o fato de eu não poder ir para casa. Sentirei falta da minha mãe e do meu pai e de Caleb e da luz do fogo de noitinha e do estalar das agulhas de costura da minha mãe, mas essa não é a única razão para essa sensação de vazio em meu estômago.

Talvez meu problema seja que, mesmo que eu voltasse para casa, lá não seria meu lugar, em meio a pessoas que se doam sem pensar e se importam com os outros de maneira tão natural.

 Pensar nisso me leva a ranger os dentes. Aperto o travesseiro contra meus ouvidos para bloquear o choro de Al e adormeço com uma poça úmida apertada contra a bochecha.


Capítulo 8