2 de setembro de 2013

Julieta Imortal

Oi, peço desculpas por qualquer erro. Mais uma vez peço paciência, mas sei que posso contar com vocês, como sempre contei.

Beijos, Bella


JULIETA IMORTAL-



VERONA, ITÁLIA, 1304

À noite, poderia entrar pela porta. O castelo está silencioso, os empregados adormecidos, e a Ama o deixaria entrar. Mas ele escolhe a janela, subindo pelos ramos das flores noturnas, carregando as pétalas em suas vestes. Uma pedra se solta e cai ao chão. Ouço seus gemidos ao correr em seu auxílio. É romântico, um sonhador, e não tem medo de se entregar. É valente e corajoso, e eu o amo por isso. Desesperadamente. O amor que sinto me deixa sem ar.

É como se morresse e renascesse sempre que olho em seus olhos ou passo meus dedos trêmulos por seus cabelos. Eu o amo quando caminha por entre as pedras escorregadias, suas pernas fortes flexionadas debaixo das calças, como se não houvesse motivo para preocupação, como se não estivéssemos infringindo nenhuma regra e não fôssemos castigados ao chegar à única casa que conhecemos.

Amo quando procura minhas mãos e as coloca em seu rosto macio, inspirando minha pele como a mais doce pétala presa em seu casaco. Amo quando sussurra meu nome, Julieta, como uma prece pela entrega, uma promessa de prazer, um voto de que toda essa doçura será eterna. Para todo o sempre. Apesar de nossos pais, e de nosso príncipe, e do sangue derramado em praça pública. Apesar de termos pouco dinheiro e raros amigos e de nosso futuro supostamente brilhante tornar-se escuro e nebuloso.

 — Diga-me que o amanhã não chegará.

Ele me deita ao seu lado, tomando-me nos braços. Suas mãos passam por meu corpo, como nunca havia sentido antes. Os dedos emanam um calor que atravessa meu corpo, lembrando-me de que logo serei sua esposa. Cada toque é sagrado. Tudo que faremos esta noite deveria acontecer, a celebração dos votos que fizemos e do amor que nos consome. Entrego meus lábios aos seus. A felicidade passa de sua boca para a minha e minto ao dizer que nada de mau acontecerá.

— Diga-me que sempre estarei aqui neste quarto. Sozinha com você. E que sempre serei a garota mais bonita do mundo — suas mãos se encontram detrás do meu vestido, leves e pacientes, retirando cada botão de suas casas com um toque de seus dedos.

No escuro, nenhum movimento brusco e violento entre nós. Ele está calmo e confiante. As velas brilham intensamente e revelam a ternura em seus olhos, comprovando, a cada momento, que não se trata de um caso passageiro da juventude. É amor. Verdadeiro. Intenso. Eterno.

— E para sempre — sussurro, envolvida por um sentimento de devoção. Uma parte de mim sente que amar é um sacrilégio mas não me importo. Não há nada no mundo como Romeu. Pelo resto da minha vida, ele será o único deus em cujos pés me ajoelharei.

Seu rosto junto ao meu, sua respiração em meu ouvido faz a minha inspiração acelerar também.

— Julieta... você é...

Eu sou sua deusa. Sinto que ele estremece quando meus dedos alcançam os botões do seu casaco e o desabotoam, um a um, revelando o fino tecido de sua camisa.

— Você é tudo — diz ele com os olhos brilhantes. — Tudo. — E eu sei que sou. Sou sua lua e sua estrela luminosa. Sou sua vida, seu coração. Sou tudo isso e a resposta para cada pergunta não feita. O conforto para cada sofrimento. Serei a pessoa que caminhará ao seu lado até o fim de nossas vidas, que revelará o prazer de cada momento que passaremos juntos e exalará a beleza por ter o privilégio de viver ao seu lado. Meu amor, meu amor, meu amor. Poderia ouvir essas palavras centenas de vezes que nunca me cansaria. Nunca.

 — Para sempre — murmuro em sua nuca, suspirando, enquanto deixo cair a última peça de roupa que cobre meu corpo.




CIDADE DE SOLVANG, CALIFÓRNIA, DIAS ATUAIS


Morrer é fácil. Voltar é muito mais doloroso.

— Oh... — coloco as mãos na testa e percebo um líquido viscoso que escorre de um corte acima da sobrancelha. Havia muito sangue dessa vez. O sangue em minhas mãos manchava o painel, pingava em minha calça jeans e deixava manchas escuras que podia ver através da luz da lua que iluminava o teto solar do carro.

Era feio, assustador, mas, surpreendentemente, o acidente não a matou. Matou a mim. Eu, agora. Ela, às vezes, dependendo de quanto tempo levo para garantir a segurança do casal de almas gêmeas que devo proteger. Ou de quanto tempo Romeu leva para convencer uma pessoa apaixonada a sacrificar a outra pelo privilégio da vida eterna.

Não deve demorar. Ele é bem-sucedido em tudo o que faz.

De qualquer forma, Ariel Dragland usará essa aparência novamente. Até que isso aconteça, ela esperará na esfera em que passei a maior parte da eternidade, em meio ao esquecimento, em um lugar deslocado do tempo e permanentemente cinza.

Meu contato com os Embaixadores da Luz avisou-me de que havia lugares piores; esferas de tormento em que o garoto que trocou nosso amor pela imortalidade sofrerá algum dia. A Enfermeira nunca usa a palavra inferno, mas gosto de imaginar que Romeu está entre os habitantes de lá. É claro, ela nunca menciona paraíso, tampouco se eu irei para lá quando terminar minha missão... se conseguir terminá-la.

Há muitas coisas que a Enfermeira prefere não mencionar.

Inclusive a extensão exata da mágica que sempre me tira das sombras, mais do que trinta vezes em sete séculos até agora.

Tudo o que sei é que a vida começa de repente. Em um momento estou adormecida e sem forma e, em outro, estou assumindo outro corpo, outra vida. A última, desagradável fantasia.

Estremeço ao me lembrar dos últimos momentos que Ariel passou comigo. Vejo-a tomando o volante das mãos do motorista antes da curva fatal na estrada e da forte arrancada para a direita, esperando que a queda no barranco matasse os dois, ela e o garoto que a machucou. Meus olhos percorrem o banco do motorista.

O garoto, Dylan, é jogado para a frente. A inclinação do carro faz seu corpo girar em torno do volante. Ele está imóvel, nenhum suspiro escapa de seus lábios entreabertos. Parece que metade do desejo de Ariel se realizou. Fico abalada novamente, mas não posso dizer que estou arrependida. Sei o que ele fez, posso sentir o ódio e a vergonha de Ariel dentro de mim enquanto o resto da sua vida transcorre para preencher os espaços vazios da minha mente.

No fundo dos meus olhos passam as imagens de seus 18 anos. Presto atenção a cada detalhe, registrando suas memórias como se fossem minhas.


"Na ponta dos pés, ponta dos pés, sempre na ponta dos pés. Subo as escadas, atravesso a cozinha, passo pelo corredor que termina no quarto onde ficam os lápis e, enfim, posso respirar. Onde ela não está vendo.

 Minha mãe, com seus tristes olhos. Sete, dez, quinze, dezoito anos e ainda não há nada mais do que uma folha de papel em branco, a promessa de que o mundo pode ser do jeito que quero. Um lugar mágico, emocionante, possível. As borrachas apagam os erros. Outra camada de tinta para cobrir tudo. Preto e vermelho e roxo e azul. Sempre azul. Minha mãe compreende o azul.

Ela vê as cicatrizes que fez. Eu tinha 6 anos. Ela vê Gema, minha única amiga, como um engano, não como minha tábua de salvação. Sabe das horas que passo sozinha e sentese mais poderosa a cada momento perdido. Eu sou o desperdício, o que devorou sua juventude ainda viva. Não quis me livrar dos ossos.

Às vezes, parece que tudo que tenho são ossos, fragmentos, uma moldura vazia. Em certos momentos, detesto-a por isso, outras vezes me aborreço ou tenho antipatia por todos e por tudo. Imagino o mundo derretendo da mesma forma que o óleo desfez a minha pele. Pele e ossos. Eu e minha mãe somos muito magras.

Os abraços machucam, mas não há muitos. Por muitos anos. Há cirurgias, dor e luzes fortes. Depois disso, são dias presa em casa com as cortinas fechadas, para a nossa vergonha. Há escuridão lá dentro, aquela intrusa maldosa que chega quando eu ouso acreditar que um dia poderia ser inteira. Há a escola e a tristeza de ser uma pessoa invisível, a inveja por não poder ser selvagem e bonita como Gema, por ser sempre a espectadora e nunca a jogadora.

Existe a frustração das palavras que não saem da minha boca independente do quanto eu me esforce. Nota D em habilidade para falar em público. O único passo para o palco é uma escalada impossível. Everest. Mais alto.

Detesto o professor Stark por seus suspiros frustrados, odeio a classe por suas risadas abafadas. Quero machucá-los, mostrar como é ter sua intimidade transformada em nós que não podem ser desatados. Gema não se importa, diz que tenho de superar essas coisas.

 Deixa de compartilhar suas aventuras, fecha a janela para o seu mundo vibrante, esquece de me levar à escola pelo menos duas vezes por semana. Estou perdendo tudo. Minha única amiga, minha média escolar, minha mente. Quanto tempo mais posso viver desse jeito? Poderei viver mais quatro anos dormindo naquela sala, indo para a faculdade de enfermagem de Santa Bárbara, aprendendo a viver com mais enfermidade e dor, quando tudo que eu quero é escapar? Mas então... ele aparece.

Seu sorriso, sua voz, em um cantar alto, atravessa as cortinas onde escondo minhas tintas, entra em meus ouvidos, remexendo os sonhos que quero realizar. Eles não acreditam. É uma piada. Estamos nos beijando, lentamente, beijos tão perfeitos que fazem meu coração disparar, quando escuto alguém perguntar se já havia tirado a virgindade da "Esquisita". Ele tenta esconder o telefone, mas percebo. Começo a chorar, embora não esteja triste.

 Estou com raiva, ódio.

Ele me oferece 50 dólares, uma parte da aposta, para que eu o deixasse completar a tarefa. Sinto-me explodir. Tento sair do carro, mas ele agarra as minhas mãos, com força, enquanto volta para a estrada.

 Diz para eu "relaxar", pois tem a promessa de me levar a um lugar melhor. Mas não há um lugar melhor. Sei disso agora. Há apenas espelhos que refletem frustrações, repelindo-as em milhares de direções, preenchendo o mundo até que não haja um caminho de volta. Sempre será assim.

Sempre, mesmo quando eu finalmente deixar a casa na estrada El Camino. A estrada, a estrada é... impossível. Não o deixarei dirigir por mais nenhum minuto. Não permitirei que ele entre no buraco da montanha ao descer para a praia, onde um oceano frio e escuro nos espera como um pesadelo.

Não permitirei.

Não agora. Não de novo".

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        Meus olhos oscilam. Meu corpo treme por conta da adrenalina, mergulhado no medo, na dor e no desespero que Ariel sentia enquanto o carro chocava-se violentamente contra as grades de proteção e voava em direção ao barranco. Sentiram-se imensamente consumidos pelo tempo em um impulso terrível.

Ela quase não teve a chance de gritar antes que o carro tocasse o solo novamente e sua cabeça fosse lançada contra o vidro do passageiro com força, arrancando a pele da sua testa e deixando-a inconsciente, mas ainda viva. Apesar dos ferimentos, ela sobreviverá... no fim. Queira ou não.

― Você resistirá. Você vai ver — disse em voz alta, embora soubesse que ela não poderia me ouvir.

Farei alguma coisa para melhorar sua vida antes do seu retorno. Irei torná-la mais suportável, já que não pode ser bonita. Os Embaixadores incentivam seus agregados a espalhar o amor e a luz, mas, mesmo que não o fizessem, não resistiria a Ariel. Ela é tão... triste. Quero ajudá-la, protegê-la da escuridão, dos Mercenários que se aproveitam de pessoas como ela.

Especialmente um Mercenário, que faz de tudo para tornar minhas vidas emprestadas tão dolorosas quanto a original. Em algum lugar, na noite fresca de primavera, ele também está procurando um corpo, munido da mesma energia que me tirou das sombras. Em algum cemitério abandonado, Romeu está escolhendo um cadáver que seja velho o bastante para não ser reconhecido nessa cidadezinha, um lugar para esconder sua alma.

Os Mercenários do Apocalipse habitam os mortos, recuperando a carne apodrecida enquanto se ocultam dentro dela. Por um momento, tenho vontade de saber como será a nova aparência de Romeu, mas logo vejo que não vale a pena. Velho ou jovem, gordo ou magro, preto, branco ou verde: o inimigo é sempre o inimigo.

― Hum, ah — geme o garoto ao meu lado, que dirigia o carro.

Torço o nariz, desapontada por ele ainda estar vivo, o que me deixa com um gosto ruim na boca. Como uma Embaixadora da Luz, devo estar acima de tais sentimentos. Mas eu não sou, nunca ter sido – não quando eu era uma menina viva, e não como um imortal guerreiro para o amor. Amor. Ás vezes o pensamento que deixa um gosto ruim na minha boca.

Ainda assim, é o melhor.

Será mais fácil para evitar o escrutínio da polícia se nós dois emergir desse carro vivo. E embora eu possa sentir que o mundo seria um lugar mais seguro sem Dylan, Embaixadores não tem permissão para matar seres humanos ... ou qualquer outra coisa. Assassinato alimenta a causa dos mercenários. Eu estou proibida de tomar uma vida, mesmo que eu tenha todas as justificativas para terminar.

“Mas nunca é direito de fazer o mal”, eu sussurro, assim como eu silenciosamente desejo que Dylan tenha no mínimo alguns ossos quebrados ou – uma porção generosa de dor. Eu poderia ser proibida de minha vingança, mas, pelo menos, Ariel pode ter um pouco dela.